quarta-feira, 8 de abril de 2009

Fragmentos do AMOR de Hilst- pela manhã

Hilda Hilst

Numa tentiva de adolescer com qualidade, enfrentar manhazinhas comuns e cotidianas, deixar de ser você, por horinhas consagradoras a coisas que só a grande poesia pode trazer. Vem dela, de quem mais seria?

I
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas.
E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena.
E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
II
E só me vejaNo não merecimento das conquistas.
De pé.
Nas plataformas, nas escadas
Ou através de umas janelas baças:
Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias.
E só me veja no não merecimento e interdita:
Papéis, valises, tomos, sobretudos
Eu-alguém travestida de luto.
(E um olhar de púrpura e desgosto, vendo através de mimnavios e dorsos).
Dorsos de luz de águas mais profundas.
Peixes.
Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis
Machucadas de gozo.
E que jamais perceba o rocio da chama:
Este molhado fulgor sobre o meu rosto.
III
Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor.
Nem é celeste
Ou terreno.
Isso de mim é marulhoso
E tenro.
Dançarino também.
Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.
Não tem nome de amor.
Nem se parece a mim.
Como pode ser isto?
Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.
VII
Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.
Aldeia é o que sou.
Aldeã de conceitos
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir.
E te mandar escritos.
Rios de rumor no peito: que te viram subir
A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras
Mas com a mulher, aquela,
Que sempre diante dela me soube tão pequena.
Sabenças?
Esqueci-as.
Livros?
Perdi-os.
Perdi-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo vêem aquela.
VIII
Aquela que não te pertence por mais queira
(Porque ser pertencente
É entregar a alma a uma Cara, a de áspide
Escura e clara, negra e transparente),
Ai!Saber-se pertencente é ter mais nada.
É ter tudo também.
É como ter o rio, aquele que deságua
Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns.
Aquela que não te pertence não tem corpo.
Porque corpo é um conceito suposto de matéria
E finito.
E aquela é luz.
E etérea.
Pertencente é não ter rosto.
É ser amante
De um Outro que nem nome tem.
Não é Deus nem Satã.
Não tem ilharga ou osso.
Fende sem ofender.
É vida e ferida ao mesmo tempo,
“ESSE”
Que bem me sabe inteira pertencida.

IX

Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.
Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.
E pensas maravilha quando pensas anca
Quando pensas virilha pensas gozo.
Mas tudo mais falece quando pensas tardança
E te despedes.
E quando pensas breve
Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano
Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.
E quando pensas VIDA QUE ESMORECE.
E retomas
Luta, ascese, e as mós do tempo vão triturando
Tua esmaltada garganta...
Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...
Canta o começo e o fim.
Como se fosse verdade
A esperança.

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