segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Festa da Cultura em Cachoeira





Lá roça a pele o vento da ancestralidade: monumento das razões lusitanas aprimorado pela natureza e pela beleza civilizatória do humano negro. O atabaque chama e a água faz renascer. É como se o harmonioso tivesse que ser e se fosse em nós todo inteiro. O chão pisado pela primordial presença indígena - cantigas das ninfas morenas do Paraguaçú em louvação à negra mãe Iemanjá. Um mundo incrustado de dor e sabor azeitado para além da escravidão. À mesa, a misteriosa maniçoba entre o índio diluído o negro reinventor e o branco que consome. A paisagem como elevação: sol brilhando no âmago do rio que segue; as chuvas que irritam o rio alimentando suas águas; uma gente com sede nos olhos e desejo no corpo; a sabedoria dos velhos e velhas que preservam caminhos para o encantamento; a poesia dos instantes; a Pedra da Baleia - otá maior da poderosa senhora de todas as águas...

O rastro da história que se deve. Expoente arquitetônico ligando para sempre passado e presente, tradição e contemporaneidade. Apesar de que lá o tempo parou nos ciclos mágicos da profunda beleza. Parou na voz de suas mulheres lavadeiras e na cerveja gelada em sua orla e em seus bares; parou na leitura de um livro da sacada de um sobrado com vista para o rio. A cidade é fomento para artistas e agora, encontro constante de intelectuais. Vívida promessa do que sempre foi concretização e ancoradouro dos sonhos mais festeiros. Aziri Tobossi à frente. Humpames Huntoloji e Seja Hundê. Capela de Nossa Senhora da Boa Morte. Nossas negras senhoras da mista mítica fé da saber viver e saber norrer.

Lá tem alívio em agosto e festejo sem par em novembro. Na Ajuda, miragens das primeiras iyaôs. O adjá toca constante; saias bem engomadas em barracões celestes na roda das mulheres comandando nossa religião. As ruas quietas metem medo. O som do sino arrepia e até frio mora lá também. O encantado misturado à dureza do dia a dia;o cotidiano de uma poética da beleza na inconstante possibilidade do sobreviver marcado ali pela força da pobreza. Mas é toda riqueza o estar da cidade na configuração do mundo.

Foi um tempo senhorial e hojé é cartão postal do nosso orgulho. O soteropolitano também nasce naquela cidade que nos arrebata sem nostirar do lugar. Ou melhor, sem nos tirar de lá - onde roça a pele a negra ancestralidade da gente.

Agora temos uma feira literária lá.

Depois de assistir Tropicália



Caetano Veloso: Tropicália
Parece, em mim, o retrato da realização em fragmentos da impossibilidade. Um homem diluído em muitas linguagens acenando para a transformação. O jeito descontente no sorriso que ilumina. O que diferente não poderia ter sido, e incita a não ficar no lugar. Escritos boiando nos esconderijos da vida, tesouro distante no solo desconhecido do Recôncavo – formato baiano num diálogo com o mundo. Poeta de qualquer língua em qualquer cidade. Poemas que nos desfiguram e alteram nossas verdades. Coragem do ser, agonia do tempo, destempero pedagógico, libido, amanhecer.
Atropelo nos padrões quando a chegada do homem quase menino mulher negro santo demônio orixá ateu. Idílio da solidão e o filme narrando a sua grandeza. Valor da existência entre o nada e a música: morada da memória que o eterniza. Receitas comportamentais na dança certeira da sorte. Programa dos deuses. O menino nascido mito e lançado à verve das contradições. Sísifo. Domínio do Oráculo de Ifá. Teoremas e traços calculados. Cigana sem consorte. Desamparo no medo. Odé contra a morte. Mulato cartesiano.
Nitidez abrasiva num projeto coletivo. O que mais sabia e ardia; era dureza, agridoçura, sexualidade ambígua e acesa, vontade de causar e ficar no sempre do país que ajudou a reinventar. A palavra como arma a favor também da conservação. Transbordo da beleza mais vital que deu sentido existencial a quem carecia pensar diferente.
Ele é o ingresso nas maneiras do fazer profundo: mercado e academia, literato e repentista, ator e galã, cantor de cameratas e agitador de multidões. Homem de batom rosa na boca. Os olhos tristes de Londres. Desenho seu que faço na face secante das águas do Abaeté ouvindo It’s a Long Way, esperando mais palavras e sons que recontem a sua história e impilam o exercício deste meu amor.