Rogério é caso
singular na arte brasileira de quem atravessou marxismo, Cinema Novo,
Tropicália e realizou-se na filosofia hinduísta. Celebrado pelas capas
de LPs que fez para Gil, Gal e Caetano, foi mentor intelectual do
tropicalismo nas artes gráficas e fora delas. Zé Celso Martinez Corrêa,
Hélio Oiticica e Torquato Neto são tributários de suas ideias. O homem
que Glauber Rocha disse estar “por trás de todos nós”, contudo, há
décadas acostumou-se ao anonimato. Convertido ao movimento Hare Krishna,
recolheu-se a uma vida religiosa e passou a se ocupar da discreta
missão de traduzir sânscrito.
Em fase de pré-produção, um
documentário sobre sua trajetória a ser rodado nos próximos meses pelo
cineasta baiano Walter Lima promete devolvê-lo à superfície.
— A ideia (
do documentário)
é mostrar o Rogério pensador — explica Walter. — Além de um designer
maravilhoso, ele é uma figura fundamental na intelectualidade brasileira
dos anos 1960 e 70, como foi Oswald (
de Andrade) na década de 1920.
Há
anos Rogério vive sozinho em Salvador e diz raramente encontrar os
amigos tropicalistas. Práticas de meditação, trigonometria e xadrez
on-line hoje lhe ocupam os dias. Mais magro do que nas fotografias
conhecidas da juventude, há um ano superou um câncer nas cordas vocais e
aparenta levar uma vida austera. Na sala de seu apartamento quase nada
sugere a ideia de decoração. Imagens não ornam paredes, caixas
empilham-se umas sobre as outras e uma lousa com o alfabeto sânscrito
ladeia uma pilha caótica de peças de xadrez. Em um canto, cartazes
carcomidos dos filmes “Meteorango Kid” e “Idade da Terra” dão testemunho
de seu ofício como designer.
— Recebo (
convites), mas
recuso. Não tô mais fazendo — diz Rogério, sobre projetos como artista
gráfico. — Minha obra é histórica, pertence a um momento da história do
design mundial, não é para ser pasteurizada.
Afastado do design,
foi professor universitário e encurtou a distância entre o leitor
brasileiro e a literatura sânscrita. É dele a primeira versão direta
para o português do épico hinduísta “Bhagavad Gita”, publicado nos anos
1990 pela editora Companhia das Letras. Sem grande repercussão, lançou
em novembro passado sua tradução do “Gitagovinda”, poema medieval de
Jayadeva Goswami que narra os passatempos sexuais de Krishna às margens
do Rio Jamuna. Conhecido por sua visão erotizada da transcendência, o
texto pertence ao cânone das letras indianas.
— Ali tem coisas que só os grandes poetas do Ocidente alcançaram, como (
T.S.)
Eliot, Goethe… — diz Rogério, admirador exaltado da comunhão entre o
sexo e o divino que há em “Gitagovinda”. — É absolutamente necessário
que nossa mente suja ocidental seja lavada pelas águas eróticas do Rio
Jamuna, para a gente entender que sexo é a coisa mais nobre e sublime.
Karma e tortura
Chancelada
pelo professor Howard Resnick, PhD em sânscrito pela Universidade de
Harvard, a edição brasileira de “Gitagovinda” saiu com a módica tiragem
de mil exemplares. Rogério revisou, editou, elaborou a capa e bancou-a
do próprio bolso.
Grande parte da obra pela qual Rogério é
celebrado se concentra na década de 1960. A pujança criativa desse
período seria abalada na Páscoa de 1968, quando ele e seu irmão Ronaldo
participaram de um protesto no Centro do Rio e foram presos e torturados
por militares. O nome Rogério Duarte Guimarães pode ser encontrado em
relatórios dos órgãos de repressão recém-abertos no Arquivo Nacional. Em
ficha do SNI (Sistema Nacional de Informações) emitida cinco dias após
sua soltura da prisão, ele ocupa menos de meia página e é descrito
sucintamente como “elemento de esquerda, assim como o irmão Ronaldo,
ligado às atividades de artes plásticas”. Um carimbo estampado ao final
da ficha informa que anexos foram destruídos. À época, a notícia da
prisão dos irmãos Duarte — uma das primeiras denúncias contra a tortura
cometida pelo exército — provocou sismos na opinião púbica pré-AI-5.
Quarenta
e quatro anos depois, a posição de Rogério sobre o episódio da tortura é
matizada. Como anistiado, reclama uma reparação mais justa e diz
guardar “um pouco de mágoa”. Espiritualmente, a interpretação é outra.
—
O trauma, só a filosofia da Índia explica: a teoria do karma. De algum
modo aquilo teria que acontecer. É a teoria de Jung, da sincronicidade.
Não existe acaso puro, as coisas têm um sentido. Porque tudo poderia ser
evitado, eu poderia simplesmente não ter ido ali naquele dia. Algo em
mim me levou para as câmaras de tortura — diz, sem qualquer tom de
ironia ou amargura. — Antes, era para mim tão inimaginável a ideia de
ser torturado que, por uma estranha razão, talvez eu pensasse: “É a
única coisa que não experimentei”.
Rogério conservou ao longo da
vida uma saudável antipatia a receituários. Conhecedor de arte burguesa
na fauna marxista do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, hinduísta
entre universitários, intelectual de esquerda entre hinduístas, sua
figura jamais comportou descrições fáceis. Não por acaso, ele costuma
reivindicar para si um lugar de marginal na arte brasileira. Traduzir
sânscrito seria apenas a etapa mais recente de uma obra historicamente
ungida pela dissonância. O aspecto iconoclasta de suas ideias teve
impacto fundo na formação de tropicalistas mais novos, como Caetano e
Gil.
— Conversávamos muito. E sobre mil assuntos. Sobretudo, ele
falava. Eu adorava ouvir e aprender — conta Caetano, sobre a convivência
no período tropicalista.
Rogério é padrinho do primeiro filho do
compositor, Moreno, e um sentido mútuo de admiração ainda hoje acompanha
a amizade entre eles.
— Sua dedicação ao estudo e à tradução desses textos (
em sânscrito)
deveria ser acompanhada com grande seriedade crítica — diz Caetano. —
Ainda assim, o conjunto de suas atividades não pode prescindir da
mensagem perene de atirar-se à margem da margem. Essa atitude
existencial dá cor especial a cada trabalho, a cada gesto de Rogério.
Para
os Hare Krishnas, Rogério Duarte é Raghunatha das. A inflexão ao
hinduísmo data do fim dos anos 1970 e coincide com sua fase de maior
ostracismo. Os esforços mais recentes em trazê-lo à baila vêm do
exterior e atualizam o poder de suas ideias. Em 2009, ele foi
homenageado com uma retrospectiva individual na Narrow Gallery, em
Melbourne, Austrália. Um ano depois, a revista japonesa de design “Idea”
dedicou 24 páginas à sua obra.
Apesar de celebrações esporádicas,
Rogério crê que seu legado ainda exige revisão. Para ele, seus cartazes
e capas de discos teriam transcendido sua função original de uso e
ganhado autonomia como arte histórica.
— Velázquez pode ter feito
retratos de encomenda, assim como eu fiz capas, mas depois eles passaram
a valer milhões de dólares. Andy Warhol fez capas de disco e cartazes
igual a mim. Mas Andy Warhol vale milhões de dólares, e eu quero que
Rogério Duarte valha pelo menos milhões de reais — diz, com um sorriso
jocoso por baixo do bigode. — Quando eu digo milhões, milhões não é
nada. É o valor real que eu quero. É a devida consideração pela
criatividade, pela inteligência que ordenou aquilo, pela capacidade de
síntese e também pela novidade.
Entre soberbo e abnegado
Dado
a autoelogios, Rogério deixa a forte impressão de ser um homem cindido.
Ao longo da conversa, ora compraz a si mesmo com sua figura de jovem
prodígio, e até se permite ataques de genialidade (“Eu já nasci
erudito”), ora palavras em sânscrito se insinuam em sua fala e reavivam
os temas religiosos que hoje ordenam seu mundo.
Apelidado de Caos
na juventude, aos 73 anos Rogério parece oscilar entre o artista soberbo
e o discípulo abnegado de Krishna. E é aí que a tarde cai, e ele mira o
relógio. Pede licença para rezar seu último mantra do dia. Fecha os
olhos e balbucia orações por entre os fios da barba grisalha. Minutos
depois, reabre-os e diz:
— Essas coisas que eu te falei agora, que sou um grande artista, que devo ser reconhecido, justiçado: tudo isso é Maia (
ilusão). Fiz essa meditação agora para me devolver a mim mesmo.
Mais
adiante, pede que interrompamos a entrevista. A fragilidade das cordas
vocais ameaça a conversa. Despede-se com gentileza, fecha a porta e
volta a recolher-se. No encontro anterior, havia dito que, a esta altura
da vida, a poesia era a única coisa que lhe restava. Recentemente,
Rogério voltou a escrevê-la. Em sua página do Facebook, publicou uma
quadra:
“Agora entendo o mistério/ Desse nó que não desata/ Eu preciso ser Rogério/ Pra também ser Raghunatha.”
P.S. : essa entrevista é um poema intenso juntando duas grandezas: a do repórter e a do mestre Duarte: é de chorar. E de alegria!