Essa esfuziante apologia à FAVELA SHOW de Igor Kannário não me convida. Pergunto-me se esse ocupar as ruas do povo baiano através do barulho gerado pelo gritador pode nos conduzir a tipos de diversão mais edificantes. Lembro-me do Chiclete com Banana atraindo as massas como rolo compressor e depois Bell Marques voltando para sua mansão na Graça...Tudo restando igualzinho. É careta se pedir por educação e se querer produtos musicais carnavalescos que nos façam um povo mais exigente?" Tire a camisa, tire a camisa - quem for FAVELA tira a camisa". Ele é um "fenômeno" porque é guiado pelo desejo catártico e começa a ser apropriado por parte dos empresários e políticos que assistem e se interessam pela força do seu discurso ideologicamente filiado às "favelas". Já entra o mercado e a voz de Kannário nos será representacional a favor de uma ordem social mais justa e menos violenta e menos desigual e mais instruída? Instrução educacional não conta? Quem defende aquilo livremente e pensa sobre o assunto ocupa lugares mais dignos e fora das ruas sujas de Salvador. Não acho que ele deva ser desconsiderado, nem tem como, mas me assusta ouvir Giberto Gil falar da legitimidade histórica dos Camarotes ( "sempre foi assim") e dizer que o melhor do Carnaval foi Tomate... Assusta-me o público antenado da Baiana Sistem com cara de: eu bebo água na casa de pobre, eu uso conta de orixá, eu falo e ando com gay, tenho muitos amigos pretos do gueto e se perfilarem como sabidos e exigentes...Mas o som da banda é lindo, resultado da presença doMicroTrio Carnaval em nossas ruas, mesmo que Gil e Caetano Veloso não consigam enxergar. Assustam-me a gritaria dissonante e as constantes ações de violência na caminhada do Kannário. Deve ser a REVOLUÇÃO que se aproxima e não será pela educação que tanto se estima. Deve ser. Um Carnaval da Baiana Sistem com um público insuportavelmente classe média e, do outro lado, o Kannário com outro público arrebentando-se violentamente, gerando um novo endinheirado que vai alimentar a indústria branca do Carnaval com a nossa estupidez nacional.
Como bom passadista que sou: me comovem as letras históricas do Ilê, o Ijexá do Gandhy, o trânsito socioeducativo do microtrio, a beleza da Rumpilezz, a força do Muzenza, a marca do Olodum, a trajetória do Malê de Balê, as perguntas gostosas da Mudança, a voz de Marcia Short, o avanço dos Negões, a presença criativa de Daniela, as invenções do Brown, a Timbalada sem cordas, Gerônimo e Luiz Caldas, Xanddy e o Harmonia Do Samba, a sofrência de Pablo, sei lá...
Não tenho a capacidade visionária de Caetano Veloso e nem a musical do mestre Gilberto Gil - mas se tratando de acompanhar Igor Kannário pelas nossas ruas, evito até do Camarote de Flora Gil, de onde certamente nossos idolos celebram o tempo da FAVELA SHOW, quando nem favelas deveriam mais existir.
disso
que tenho desenhado interno mas visível. disso que é mistério em delação. a
coisa que é mas não funciona. oposições do sublime que só entardece. o toque
etéreo, a imensidão. disso que grita quando eu quis silêncio. disso que é meu
medo e eu cheio de coragem. disso que é abundância sem esperança e minha voz no
outro sem voz em sonhos. disso que é sonho e eu sonho sonhos como sim. disso
primavera e forte estio no frio fora de mim. disso blue em inglês na ponta do
desejo. à espera. na ponta da língua que lambe discreta. disso que só sabe
morar em mim. amor
De lá, 1965, o grito do carcará; daqui, 2015, o doce entoar
em pronúncias perfeitas sobre etnias indígenas que civilizam o território
nacional. Hoje, o Brasil celebra os 50 anos de carreira da matriarca da canção
brasileira. A senhora franzina que pauta beleza e simplicidade no cenário
cultural deste país. A mulher que ensina com o canto minucias e delicadezas que
estão em nós e, muitas vezes, bem esquecidas.
Hoje a Iara dança desguarnecida, livre, desatenta, em nome da
festa que a canção popular nos traz. E sem vontade de ser destemida. Hoje é um
tempo vermelho dourado da beleza nascida em Santo Amaro, na Bahia, mas que na
forma de raio e pássaro conquistou o Brasil. As águas remontam uma história que
revigora o estar de um mito. Um gênio feminino atirado ao campo artístico, ao
educativo, ao antropológico.
A memória negríssima no poema de Fernando Pessoa, nos
estimulando a ler, nos convidando a ver, nos fazendo agir, nos permitindo
gozar. A memória guarida da palavra eleita para os sonhos que, como fogo, se obriga
a transformar este país. E pra melhor. A história do impossível sonho que rasga
o chão para que brote a rosa vermelha do deserto.
50 anos de esmerada carreira movida à paixão. Do teatro show
Opinião até o centro do nosso Castro Alves, Maria Bethânia é o ouro que faz
amanhecer este país, como se ela fosse a rosa do deserto de Cecília: “Eu vi a
rosa do deserto/ainda de estrelas orvalhada/ era a alvorada”.
A alvorada é Bethânia recomeçando. Frente ao disco Ciclo
dedicando a Seu Zezinho. Ela tocando o chão para saudar mãe Menininha. Ela
reaprendendo Pessoa aos cuidados de dona Cléo.
Ela sendo analisada em um congresso todo seu feito pela Associação Rosa
dos Ventos Bahia. Ela vista menina irmã mulher artista nas narrativas de Mabel.Ela derretendo-se de saudade de
dona Canô, de Nicinha, de Fauzi Arap. E nunca desistindo.
Um dia, em uma entrevista, ela me disse: “obrigada por gostar do
meu trabalho, um simples ofício de cantora popular. E que você se expresse com
sensibilidade e inteligência, Deus o abençoe sempre”. Havia ali a presença toda
sã de uma das maiores artistas que este país viu nascer e permanecer, falando
com alguém que engatinhava, aos 33 anos, buscando a expressão como acadêmico
entre a história, o jornalismo e a antropologia, usando como tema de pesquisa o
talento fulgurante da cantora em associação às narrativas do orixá Oyá-Iansã.
A partir da pesquisa começada na Faculdade de Comunicação da
UFBA, e ainda continuada no Programa de Pós Graduação em Estudos Étnicos e
Africanos, no CEAO, passei a centralizar em mim os exemplos estéticos e
intelectuais dados por ela. Tornei-a meu controle de qualidade para as coisas
que me atrevo a fazer.
Maria Bethânia Vianna Telles Velloso faz nestes 13 de fevereiro
50 anos de oficializada e luminosa trajetória artística no principal cenário
lítero-musical brasileiro. Uma cantora popular nascida na Bahia que ensina ao
Brasil a ser brasileiro, que brada ao som da inconfundível voz possibilidades
estéticas, saídas políticas, memórias, trajetórias religiosas, convivências
étnicas, melhoras sociais. Ou seja, uma voz que escreve belezas e educa a favor
de uma plateia nacional que seu talento merece conhecer.
São 50 anos desfiando os lugares mais límpidos da poesia, usando
o som e a palavra para expressar a sua dilacerante inteligência que colore o
seu comportamento e define a sua arte.
Inteligência e sensibilidade que alicerçam sua caminhada embasada em
autodidatismos e a levam a fazer uma espécie de etnoantropologia deste país,
que custa a se transformar em um lugar mais humano e igualitário no sentido das
questões econômicas.
Bethânia é a beleza que esmigalha opiniões, pois transpõe as
favoráveis e as desfavoráveis – a sua força inventiva somada à autopreservação
e à vontade missionária por expressão, a conduziram ao posto de artista
feminina mais importante do cancioneiro no Brasil. O amadurecimento do seu
canto, aos 68 anos de idade, confere a nós brasileiros o privilégio de termos
viva uma das maiores cantoras do mundo em atividade. A sua recorrência estética
embeleza o mundo com as coisas mais simples e mais necessárias que temos no
nosso cotidiano, e que podem nos traduzir identitariamente.
Inexplicavelmente, ela é poesia transfigurada em fêmea, mulher,
cantora, brado, projeto, elucidação, silêncio... A artista que gera congressos,
que atrai Omara Portuondo, que inspira poetas, desequilibra intelectuais, e
melhor, singularmente canta o que se pede pra cantar.
Nota nítida é o estar desta menina que, dos seus quintais,
elabora sonhos e paisagens e nos convida a participar. Uma mulher aquática
destemida, dona dos ares, brincante, entreposto da emoção que dialoga com a
razão de quem sabe ser gente e águia, esta sereia negra da voz matricial da
Purificação.
A diva que diz: “ Chegar para agradecer e louvar o ventre que me
gerou, o orixá que me tomou, a mão de água e ouro de Oxum que me consagrou”; e
sai pelos palcos, clariceanamente, desafiando: “ tropece aonde eu tropecei, e
levante-se assim como eu fiz”.
É esta a rosa do deserto de Cecília, a destemida Iara do amado
Caetano, a principal discípula de Fauzi, a filha mais exemplar da minha
majestade Oyá, o manancial da diversa beleza que trago para dentro da
antropologia que faço.
Musa e mestra numa carreira longeva que está sempre
recomeçando.
Marlon Marcos é poeta e pesquisador aficionado da obra de Maria
Bethânia.