quarta-feira, 31 de agosto de 2011

É doce morrer no mar


Cesária Évora, Marisa Monte. Vozes na canção do Caymmi. As ondas verdes do mar de mim. Amor na memória. Fé no coração!

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Navegações do crítico e "herói vocal" Antonio Candido

"A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização" ( sobre Clarice Lispector).

Claudio Leal (30/08/2011)

Terra Magazine

Distanciado da crítica e da vida universitária, o professor Antonio Candido ressurgiu na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho de 2011, com a agilidade humorística e a alma de conversador intocadas. Para homenagear o amigo Oswald de Andrade, ele aceitou serpentear a serra e enfrentar o frio do inverno fluminense. Da sua prosa escaparam frases que poderiam se aninhar numa crônica machadiana: "Sou uma pessoa de temperamento conservador. Uso bigode, ainda. Os jovens usam barba".
Nascido em 1918, no Rio de Janeiro, mas criado em Minas Gerais e radicado na capital paulista, onde ingressou no corpo docente da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, Antonio Candido é o maior crítico literário brasileiro, autor dos clássicos "Formação da Literatura Brasileira" e "Literatura e Sociedade". Recolhido aos seus romances favoritos, completou 93 anos neste 24 de julho.
"Vocês exageram muito no meu valor. Não tenho o valor que vocês dizem", adverte, por telefone. Nestas antimemórias, ou navegações históricas a contragosto, recorreu-se a conversas de repórter com Antonio Candido, de 2007 a 2011, algumas delas deliciosas somente pela recusa do pedido de entrevista; num desses dribles, com engenhosidade de Mané Garrincha, afirmou que é um homem "fora do tempo", pois deixara de ler obras novas e falar com a imprensa ainda no século passado.
Além desses papos - um deles na entrega do troféu Juca Pato, em 2008 -, houve uma fuçada nos arquivos de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Pedro Nava, na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. Nessas pastas estavam preservadas fatias inéditas de seu diálogo com escritores contemporâneos. E mesmo por escrito, Antonio Candido parece ter aquela elegância e sobriedade de "um mestre-sala" da Estação Primeira de Mangueira, como identificou o contista João Antônio.
Mestre-sala, mas de bigode.

Um recuo na Livraria José Olympio


"Nunca. Nunca". Antonio Candido sempre correu das rodas literárias, do diz que diz das portas de livrarias, das conversas pretensiosas de escritores. "Eu só conheci esse pessoal em congressos. No Rio, nunca entrei na José Olympio", confessa o nada mundano homem de letras. Recorda-se do dia em que viu José Lins do Rego "enrolando a chave na ponta e a corrente do relógio em volta do dedo", no umbral da J.O., na Rua do Ouvidor, 110. Apenas observou-o, sem tirar chapéu, e passou longe.

O retraimento reduziu o contato com grandes personagens do universo literário, como Jayme Ovalle, inspirador de uma penca de escritores seus amigos, de Manuel Bandeira a Vinicius de Moraes. As raras concessões ocorriam na casa da crítica Lúcia Miguel Pereira, sua "prima-irmã" e biógrafa de Machado de Assis, casada com o historiador Octavio Tarquínio de Sousa. O casal morreria num desastre aéreo, em 22 de dezembro de 1959; donde se pode ter uma data exata da despedida de Candido dessa pequena academia de letras. "Ia à casa dela, jantava lá, então vi Bandeira, Graciliano Ramos... Eu fugia dos meios literários, dos lugares que havia escritor", relata.

(Na mesma casa, o jovem Bruno Tolentino - sobrinho de Lúcia, primo de Antonio Candido e futuro desafeto de metade dos habitantes do território nacional - ouviu Graciliano decretar: "Não admito que ninguém admire mais Machado de Assis do que eu!").

Em São Paulo, o crítico frequentava a Livraria Jaraguá, fundada em 1942 por Alfredo Mesquita, na Rua Marconi, 54 - o reduto de Mário de Andrade, de Oswald de Andrade e dos batutas da revista "Clima". "Lá encontrei o Zé Lins, mais uma vez, e o Augusto Frederico Schmidt".

Schmidt, editor de Graciliano e Gilberto Freyre, havia sido cliente do médico Aristides Candido de Mello e Souza, em Poços de Caldas (MG).
"Meu filho gosta muito dos seus versos", avisou.
"Então diga a seu filho que é para me procurar", ordenou o autor de "O Galo Branco".

Beirando os dezoito anos, com a primeira penugem de rapagote, Antonio Candido encontrou o "gordinho sinistro", que lhe recitou poemas num hotel. Em 2011, considera "uma injustiça" o esquecimento da obra do escritor carioca. "Ele é abundante demais, de modo que tem muita coisa que não tem interesse. Mas é um grande poeta", afirma, acrescentando que a vida empresarial bem-sucedida armou seus detratores (Schmidt era proprietário da rede de supermercados Disco). "O fato de ele ser empresário e de ser ligado ao governo (Juscelino Kubitschek). Parece que ele tinha uma cabeça econômica muito boa. Criou políticas econômicas importantes". Em seu ostracismo, o poeta cumpre a sentença de um dos sonetos de "Fonte invisível", numa cadência bíblica: "Em lembrança se irá mudando, aos poucos,/ E dormirá em nós teu sono eterno/ Como se viva nunca fora dantes".

Árvore mineira

Na infância em Barbacena, Minas Gerais, Clarisse Tolentino de Mello e Souza aprendeu um ditado (quase uma lição de genealogia mineira) que retransmitiria aos filhos: "Parente de meus parentes meu parente é".
Antonio Candido aplica a lógica da mãe: "Por essa teoria, Drummond é meu parente". Ana, uma prima da mãe de Drummond, casou-se com Álvaro Astolfo da Silveira, tio do pai do crítico. Dúvida nenhuma: parente é.

O tio-avô "sistemático"

Este Álvaro Astolfo da Siveira (1867-1945) entrou no folclore mineiro pela porta da frente do cinema Odeon, na Belo Horizonte dos anos 20. Nos filmes de sábado, ao custo de "pila-e-cem" (1$100 réis), todos os espectadores respeitavam a poltrona do engenheiro, "um homem muito estourado e muito excêntrico", na definição do sobrinho-neto.

Em "Beira-mar", o memorialista Pedro Nava descreve o cavalheiro e sua cadeira cativa no Odeon, vívidos nas lembranças juvenis de 1921 a 1926: "Acabou a primeira sessão. Esvaziada a sala de projeções, abriam-se batentes de púrpura da cortina de veludo das duas portas que lhe davam acesso. Campainhas tinindo, entrava o pessoal da segunda. Já estava sentado na última cadeira da fila do alto do balcão esquerdo o Dr. Álvaro Astolfo da Silveira. Assistira à primeira sessão e, como era seu hábito, ia repetir o filme, na segunda".

A narrativa de Nava congela os temores de menino. "Ninguém ousava tomar sua cadeira, que aquilo era lugar cativo. E se algum imprudente o fazia, o dono do assento chegava e seco, intimava o abancado a dar o fora. Era obedecido imediatamente porque todos sabiam que ele não brincava".

"Se meu tio não aparecia, ninguém sentava na cadeira dele. Todo mundo tinha medo. Era um homem estourado mesmo", depõe Antonio Candido, que não chegou a conhecê-lo, mas preservou as histórias familiares. Em 1979, depois de responder a uma consulta sobre a publicação da correspondência de Mário de Andrade, o crítico avisou a Nava sobre o parentesco: "Li e gostei muito de 'Beira Mar', onde perpassa o meu sábio e 'sistemático' tio-avô Álvaro Silveira. Continuo fan incondicional das suas memórias, que leio como alta literatura que são". Sistemático, no eufemismo dos mineiros, é uma pessoa cheia de manias, estouvada, inflexível. De pedra.

O diabo Agrippino

Demônio dos diletantes e cronista da vida literária, Agrippino Grieco era uma das paixões jornalísticas de Antonio Candido, nas horas lentas da meninice ávida por frases sarcásticas. Os torpedos do crítico atingiam, com frequência abusada, o presidente da Academia Brasileira de Letras, Cláudio de Souza.
De perversidade, Grieco espalhou que enviava os livros do acadêmico à Casa de Detenção do Rio de Janeiro. Até o dia em que reconheceu o erro: "Pobres diabos! Já sofrem tanto! Para que afligi-los ainda mais com a literatura de Cláudio de Souza?".

As farpas agrippinianas chegavam a Poços de Caldas na garupa do "Boletim de Ariel", editado em parceria com Gastão Gruls, e dos caudalosos artigos nos jornais. Antonio Candido se recorda dos livros de Agrippino na estante de casa e, sem abusar da memória, revê o pai com um deles, "Estátuas mutiladas", ao estilo dannunziano. "Muito superficial, mas engenhoso. Ele era uma voz literária muito viva na época, acessível, todos o liam", relembra Candido.

Crítico representativo dos anos 20, Grieco atravessava o País numa turnê de conferências literárias repletas de blagues antiacadêmicas. E não era dado a perder viagem. Um dia, acompanhado de Salomão Jorge, que repartia salomonicamente o cachê, deu com a língua em uma cidade falida, sem recursos para bancar os ingressos da palestra. A não ser, ressalvou o prefeito, uma pequena verba de "calamidades públicas"...
"Nós somos uma calamidade pública!", fiou Agrippino.
Antonio Candido não se esquecerá de uma dessas conferências em Poços de Caldas. Jamais iria rever o mestre da maledicência.

As descobertas

Para um crítico, "o pior dos erros é acertar contra muita gente", troçava Agrippino Grieco. Titular do rodapé "Notas de crítica literária", Antonio Candido arriscou sua reputação, semanalmente, na Folha da Manhã (1943-45) e no Diário de São Paulo (1945-47). Lançado em 45, o livro "Brigada ligeira" reúne textos nascidos em um período exuberante da literatura brasileira e apresenta escritores do nível de José Lins do Rego, Jorge Amado, Oswald de Andrade, Clarice Lispector, Fernando Sabino, José Geraldo Vieira, Érico Verissimo, Ciro dos Anjos e George Bernanos - este último uma celebridade cultural francesa, que residiu em Barbacena (MG) durante a Segunda Guerra.

A crítica teatral, analisa o jornalista e teatrólogo Sábato Magaldi, sofreu influências do autor de "Formação da Literatura Brasileira". "A presença de Antonio Candido na crítica brasileira foi fundamental para que ela fosse levada a sério. Não que ela não tivesse importância, mas ele lhe deu uma seriedade e uma precisão que se tornaram escola para todos que o secundaram. Depois dele, não houve um crítico que não seguisse o seu exemplo", reconhece Magaldi, membro da Academia Brasileira de Letras. E o respeito se transmitiu aos escritores. O poeta Thiago de Mello emoldurou e pendurou uma carta de Candido na parede de sua casa, na floresta amazônica. À noite, em Barreirinha (AM), quando deseja "ter prazer na leitura", abre "Literatura e Sociedade".

Questionado sobre a contribuição inovadora de Antonio Candido, Roberto Schwarz, autor de uma das obras seminais da crítica brasileira, "Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis", atribui a ele "a invenção de um tipo de ensaio híbrido, em que análise literária, análise social, teoria literária e reflexão sobre o Brasil se combinam de modo inédito, dando ao ensaísmo literário uma força peculiar, inclusive de intervenção no debate nacional".

O prestígio de João Antônio (1937-1996), grande contista surgido nos anos 60, deve um naco aos elogios de Antonio Candido a textos como "Paulinho Perna-Torta". Ele é também um dos descobridores do poeta alagoano Lêdo Ivo. "Quando eu tinha 22 anos, saiu um artigo dele sobre mim. A recepção a ele era muito boa no Rio de Janeiro. Ele descobriu João Cabral e Clarice. Acertou ao descobrir a gente. Só errou com Bueno de Rivera, de Minas Gerais. Ele apostou, mas esse poeta não prosperou. E errou ao apostar em Maria Julieta Drummond, a filha de Carlos Drummond. Mas, na crítica diária, não se acerta sempre", minimiza Lêdo Ivo.

O crítico dedicou um artigo ao poeta mineiro na revista "Clima" de 16 de novembro de 1944. "O sr. Bueno de Rivera manifesta no seu livro influência de outros autores brasileiros, e sobretudo, talvez, do sr. Carlos Drummond de Andrade. Um Carlos Drummond, todavia, que houvesse dissolvido a sua tanto ou quanto rigidez - o baque hirto de certos versos seus - nas larguezas melódicas e quase virtuosísticas de um Vinicius de Morais", avaliou.

Poeta da geração de 45, autor de "Mundo submerso" e "Luz do pântano", ele terminou esquecido pelos leitores, mas o escritor e jornalista Humberto Werneck o ressuscitou nas saborosas histórias de "O desatino da rapaziada" (1992). "É Bueno de Rivera, sem dúvida possível, o Jonas Ribeiro que aparece em "Um artista aprendiz", o romance de formação de Autran Dourado, no qual se disfarçam as figuras mais notórias da vida literária belo-horizontina dos anos 40", entrega Werneck. "Laboratorista do serviço público, não quer saber de contato com as amostras que recebe para examinar - e para evitá-lo concebe o que Wilson Figueiredo, seu colega de trabalho, batizou de 'exame sociológico de fezes': classificava as amostras conforme a procedência, se de bairro pobre ou rico da cidade. Vindo da Pampulha, por exemplo, o material muito possivelmente trazia a esquistossomose, e assim por diante".

Perto do coração

"Tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, escritora até aqui completamente desconhecida para mim", anotou Antonio Candido em seu rodapé no jornal "Folha da Manhã", em 1943.

"A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização", analisou, a quente. Não era um julgamento comum. Na época, o pernambucano Álvaro Lins desferiu uma clássica mancada, ao fazer uma crítica desencorajadora sobre a estreia de Clarice.

O vaticínio de Candido, praticamente uma descoberta, tornou-se célebre. Menos para a romancista. Cerca de trinta anos depois, num encontro literário na PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro, Clarice Lispector passou um bilhetinho para o professor, que estava ao seu lado: "Antonio Candido, por que você nunca escreveu sobre mim?".

O medo

Dez de maio de 1944, passado algum silêncio, Antonio Candido se penitencia em uma carta ao poeta Carlos Drummond de Andrade: "É uma vergonha o atraso e a falta em que estou consigo. Recebi há tempo o seu poema magnífico dedicado a mim. Não imagina a emoção com que o li. Somos mineiros, não digo mais nada".
Era o poema "O medo", publicado em "A Rosa do Povo".

"Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto
(...)".
Drummond pinçou a epígrafe na resposta de Antonio Candido ao inquérito "Plataforma de uma geração", elaborado por Mario Neme: "Porque há para todos nós um problema sério... Este problema é o do medo".
Outra dedicatória do itabirano afagará um dos talentos menos celebrados de Candido. Em 1948, na folha de rosto de "Poesia até agora", com o pensamento nas cantorias das madrugadas do II Congresso Brasileiro de Escritores, em Belo Horizonte, Drummond riscou:
"Para Antonio Candido, o herói vocal das madrugadas belo-horizontinas".

Uma voz na noite

O medo transbordou na ditadura militar de 1964. O professor metódico, amparado em fichas e arquivos, injetava alegorias políticas nos exercícios em sala de aula. Desconfiado dos delatores encaramujados na Universidade de São Paulo, ele recorria ao poema "Permanência da poesia", de Emílio Moura, para emitir fumaças de rebeldia.
"Antonio Candido foi uma das figuras que concentraram a resistência à ditadura no âmbito universitário. Estava à frente de tudo quanto era protesto, para estabelecer limites, dizer que a ditadura não passaria dali. No dia da morte de Vlado Herzog, ele convocou uma reunião. E todo mundo acorreu. Era uma reunião de protesto", lembra a professora de literatura da USP, Walnice Nogueira Galvão.
"Havia alunos espiões, era uma coisa medonha. Tinha que ficar quieto", Candido narra. "Mas eu dava um jeito: recitava e analisava esse poema de Emílio. Todo mundo entendia na mesma hora". Abrindo aspas:

"Permanência da Poesia

Quando a luz desaparecer de todo,
mergulharei em mim mesmo e te procurarei lá dentro.
A beleza é eterna.
A poesia é eterna.
A liberdade é eterna.
Elas subsistem, apesar de tudo.
É inútil assassinar crianças. É inútil atirar aos cães os que,
de repente, se rebelam e erguem a cabeça olímpica.
A beleza é eterna. A poesia é eterna. A liberdade é eterna.
Podem exilar a poesia: exilada, ainda será mais límpida.
As horas passam, os homens caem,
a poesia fica.
Aproxima-te e escuta.
Há uma voz na noite!
Olha:
É uma luz na noite!"

O militante contumaz ensinava uma lição que poderia constar em "O estudo analítico do poema", talvez num parêntese político: "Onde se falava poesia, o pessoal traduzia como 'democracia', 'povo', etc. Esse poema me foi muito útil como resistência à ditadura".

A mão do crítico, 1944

Casa da Rua Perdões, 131, Aclimação. Antonio Candido prova uma "noite de baile". Na madrugada de 16 de outubro de 1944, sua filha recém-nascida, Ana Luisa Escorel, cobra os mimos do pai, que está dividido entre a máquina de escrever e o berço. Numa carta a Drummond, o crítico folga a gravata:

"Meu caro Carlos Drummond.
Muito obrigado pela remessa das 'Confissões de Minas'. Junto, um artigo que publiquei a respeito na minha secção. Li o livro, em grande parte, numa noite de baile, isto é, choro da minha filha, velha de dezenove dias. Até às 4 da manhã, num canto do quarto, à meia luz. E escrevi as notas num sábado acidentado, saindo da máquina para o berço e vice-versa. Creio que o descosido vem em parte deste jogo
".

O contraponto do berço surgiria em "O pai, a mãe e a filha", o livro de memórias de Ana Luisa Escorel, com fotogramas das vivências familiares e intelectuais na primeira infância. "A atenção da mãe", Gilda de Mello e Souza, "estava sempre pregada no pai, nos livros e nas ideias que apareciam na cabeça dela, sem parar". As batucadas de Antonio Candido inundavam de sons metálicos a sensibilidade das filhas Ana Luisa, Laura e Marina:

"Quando não estava lendo nem fichando, o pai batia à máquina com o ritmo do pensamento servido apenas pelos indicadores. Ao contrário da mãe, ele nunca aprendera a datilografar e só escrevia assim: com os dois dedos apontados para o teclado, tirando com as batidas aquele barulhinho seco e cadenciado, som integrante da vida da casa, melodia necessária garantindo que tudo corria como se esperava que fosse. "

"Clima" sem clima

Criada em 1941, a revista "Clima" escalou uma seleção de intelectuais que marcaria a crítica brasileira. Maldosamente apelidados de "chato-boys" pelo modernista Oswald de Andrade, naquele estabanado jeito de bater antes de estender a mão, eles foram além da literatura, do teatro e das artes plásticas, e acolheram a análise do cinema, arte que ainda não se firmara nos territórios acadêmicos. No grupo central, pontificavam Alfredo Mesquita, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza (à época, "Moraes Rocha"), Lourival Gomes Machado, Paulo Emílio Salles Gomes e Ruy Coelho.
Mário de Andrade foi convidado para assinar o texto de abertura, "A elegia de abril". "Poucas vezes me vi tão indeciso como neste momento, em que uma revista de moços me pede iniciar nela a colaboração dos veteranos", iniciou o autor de "Macunaíma".

O arquivo Drummond, na Fundação Casa de Rui Barbosa, guarda uma carta de Antonio Candido com pedido de colaboração (sem ano determinado, mas assinada em um 25 de agosto). O envelope trouxe também uma angústia e um plano irrealizado:

"O grande óbice, no momento, é a falta de boa colaboração para os próximos números. Toda gente se acostumou a ver em Clima uma revista de grupo, e acha que o tal grupo quer guardá-la para si, fechando-se aos outros. O que é um erro. O que queremos é que a revista seja de todos, e que todos se sintam nela à vontade. Estamos, mesmo, estudando um modo de matá-la como revista pseudo de grupo para ressurgí-la", desabafou.

"Isso eu não me lembro, absolutamente", afirma Antonio Candido, cerca de setenta anos depois, ao ser indagado sobre o desejo de recriar a revista. "Não tenho a menor ideia. Só sei que não conhecia o Drummond - eu era mocinho - e escrevi uma carta, pedindo colaboração. E ele mandou um dos poemas mais importantes, que é a teoria poética dele, a 'Procura da poesia'", relata o crítico, ressaltando que o poeta "era muito generoso com os moços". O poema custou a ser publicado: a "Clima" precisava de dinheiro, não apenas poesia, para ser rodada.

Belo Horizonte, 1947

As brabezas do Estado Novo se esvaíram com a redemocratização do País, a partir da queda de Getúlio Vargas, em 1945. O retorno dos intelectuais às ternuras políticas e boêmias podia ser medido nas madrugadas de Belo Horizonte, no II Congresso Brasileiro de Escritores, em 1947. Pelas ruas, Sérgio Milliet executava a canção marcial francesa Malbrough s'en va-t-en guerre (corrente também, assegurava-se, numa tradução informalíssima de Mário de Andrade); Antonio Candido arriscava um Cururu, do folclore caipira; e Décio de Almeida Prado, o responsável crítico teatral, continuava a seresta belo-horizontina com "uma canção de amigos-do-copo". Décio e Candido formavam uma dupla de chansonniers. Nada estranho para o segundo cantor, acostumado a entoar uma versão francesa de "Fita amarela", de Noel Rosa, traduzida por Milliet:

"Quand je mourrai,
Je ne veux pleurs ni chandelle,
Mais un tout petit rubaii,
Avec le nom de la belle".


Nas mesas das patuscadas, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Arnaldo Pedroso d'Horta e Carlos Lacerda. "Luis Martins, paulista naturalizado, reforçava a animação com imitações impagáveis de artistas e escritores conhecidos (coisa também da especialidade do múltiplo Antonio Candido)", registrou Drummond, no seu diário de 18 de outubro de 1947, transcrito em "O observador no escritório". O impasse nascido no Congresso, após uma ladina moção dos comunistas, seria desatado pelo jornalista Julio Mesquita Filho e pelo casal Lúcia Miguel Pereira-Octávio Tarquínio de Souza, numa das mesas do Pinguim. Com direito a um discurso de Antonio Candido, além dos merecidos chopes.

A partir de 1946, as correntes políticas ficaram mais expostas, e o primeiro congresso não deixara de dar uma contribuição para encurralar a ditadura varguista, cambaleante desde a entrada do Brasil na guerra. Nas reuniões de 1945, "Mário de Andrade quase não participou", destaca o crítico. "Ele estava sempre presente, ouvia tudo, mas não usou a palavra nenhuma vez. Oswald também quase não participou. Mas foi um congresso muito importante, porque foi a primeira vez que os intelectuais tomaram uma posição contra o Estado Novo, tanto assim que os jornais não aceitaram nosso manifesto. Não puderam publicar. Quando foi em fevereiro, houve a famosa entrevista de José Américo de Almeida e aí rompeu a liberdade de imprensa".
Em dois anos, renasceriam as divergências entre os intelectuais. "Houve o seguinte. No Congresso de 1945, realizado em São Paulo, como havia a ditadura, a tendência era fazer frente única. Desde os conservadores até os trotskistas, todo mundo se uniu contra a ditadura, que caiu em 1945. Em 47, cada um já estava na sua posição. E aí, uma série de equívocos. Houve um conflito muito grande entre os comunistas e os não-comunistas. A coisa se extremou. Em certo momento, nós nos retiramos do Congresso... Houve uma série de concessões recíprocas e o congresso se uniu. Quem conta isso bem é o Drummond", relata Antonio Candido, em julho de 2011.

De volta à boêmia de 1947. Suspensa às 4h, com o fechamento do bar, a farra se transferia para os jardins da Praça da Liberdade. Apesar dos temperamentos boêmios, Milliet e Luis Martins não viraram as noites com os amigos, graças a um revezamento de dispneia. "Sérgio Milliet não participou dessas noitadas, devido a um trato que fizera comigo: como ocupávamos, no hotel, o mesmo quarto - e como ambos roncávamos muito alto -, combinamos que ele dormiria à noite e eu durante o dia", narra Luis Martins no autobiográfico "Um bom sujeito".

A primeira viagem de Antonio Candido a Belo Horizonte certamente marcou o espírito do "mineiro de fronteira", pois voltaria a lembrá-la numa recaída nostálgica, em 7 de outubro de 1986, ao escrever para Carlos Drummond de Andrade. "Não é nada não; só vontade de me comunicar com você, porque estou chegando de Belo Horizonte, onde fiquei cinco dias vendo parentes e amigos velhos (...) Lá, muitas pessoas que nada tem a ver com literatura me disseram: li o que o Drummond disse de você. Então lembrei daqueles dias de 47, excelentes apesar das encrencas. Das cantorias e piadas no Pinguim. Dos passeios noturnos. Na Praça da Liberdade olhei o Palácio Arquiepiscopal e lembrei de uma hipótese que apresentei a você, ao Rodrigo, ao Décio numa daquelas madrugadas ambulantes: que uns enormes cachorrões de guarda fossem destinados a práticas terríveis para compensar as frustrações do digno Arcebispo D. Antônio...", insinua.
"Nós imaginávamos cenas com os cachorrões do Arcebispo e dos jardins do Palácio da Liberdade", diz Antonio Candido, depois de ouvir, por telefone, o trecho da carta. Dom Antônio dos Santos Cabral era "o sergipano que empatou por longos anos a igrejinha da Pampulha", como define Humberto Werneck. "Cheguei a conhecer, nos ombros do meu pai em procissões e num congresso eucarístico, essa figura reacionária", relembra o escritor mineiro.

Na carta a Drummond, preservada no arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, Antonio Candido apresentaria outros argumentos para celebrar as antigas farras: "Bons tempos, não apenas porque passaram, mas porque eram os de Milton Campos no governo e, por pior que fossem as perspectivas políticas, Minas não corria o risco de ser governada por um gangster nem de ser tripulada por vigaristas nas assembleias e altos cargos".

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Robério S. Souza lança livro em Salvador


Robério S. Souza é um jovem ( e grande) pesquisador, historiador, nascido em Alagoinhas- Bahia, onde hoje é professor de História Social da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Graduou-se em história e fez mestrado na UNICAMP, instituição onde conclui seu doutoramento nesta mesma área.

Lança, dia 02 de setembro de 2011, a partir das 18 horas, no CEAO-UFBA, seu primeiro livro: Tudo Pelo Trabalho Livre, uma parceria da EDUFBA com a FAPESP, que proporcionou ao pesquisador esta publicação que é resultado da sua dissertação de mestrado.

O livro discorre, com  propriedade analítica, sobre a formação de uma  classe  trabalhadora  operária na Bahia, com a construção da estrada de  ferro, destacando a presenaça maciça de humanos negros ex-escravos e seus descendentes organizando-se como categoria e lutando por melhores condições de trabalho e de vida. É um texto considerado inovador e promotor de belas reflexões sobre a história social da negritude brasileira do Pós-Abolição. Imperdível!

domingo, 28 de agosto de 2011

Mar da Baía


Perco tempo com o ouvido no coração do mar

sábado, 27 de agosto de 2011

É domingo nas esquinas dos meus caminhos


Para datar, já é domingo no meu pensamento, 28 de agosto de 2011, nas ruas da Cidade da Bahia. Adianto-me ao dia que deverá ter sol sobre a poesia do mar daqui. Talvez seja só isso e para além disso essa imensa vontade de achar. Nessas ruas menos esburacadas que minhas esperanças, mas atoladas de gente indo sem sentido pela falta que nos resta como resignação. É domingo no jeito de estar consigo perdido de solidão. O silêncio que murmura uma espécie de dor;  o tempero de outrora falhando o caldo cultural que nos aludia, crescia, fomentava, brilhava  em símbolos para o mundo.

É domingo nesse universo de mendigos de tantos tipos e pouca sorte. As letras erradas nas paredes acabadas e o tormento dos novos escritores. O olho da serpente instruindo o bote. O miasma medieval de uma cidade contemporânea pelo mundo visitada. O céu de um azul tão estupidamente lindo, confundindo-se com  o verde-azul do mar nesta terra: assolada de pobreza e vergonhas. A fome que desconstrói. A sede que aniquila. A vertigem que aponta doenças, as descrenças, o prefeito mais burro que há.

É domingo nessas esquinas que encontro. Todo dia e ultrapasso. Vejo com sofreguidão e medo o meu caminhar diurno neste domingo que começa já, amanhã de manhã. Faço um filme experimental e sou peça-chave, protagonista entre prostitutas, ambulantes, mendigos, franelinhas, drogados, boêmios, taxistas, cafezinhos, gatunos, michês,travestis, pedintes, velhos, crianças, mulheres, padres, baianas do acarajé; sou-me o meu comando à frente dessa gente que sou eu me encenando.

É domingo no que sempre deve ser. Teatro de portas fechadas; cinema  sem repertório; praias lotadas; música sem audição. E o amor visto só do retrovisor sem bússolas para encontrar. Uma paisagem belíssima à vista do mar mas sem partilha. Domingo das ratazanas com medo do  veneno da gente. Os sons altos do pagode insuportável, o berreiro pegajoso das paulas claudias joelmas... É domingo à espera da Primavera, de mais flores, das Águas de Oxalá, de Setembro, da voz de Gal, das boas novas, de conquistas, de uma carta, de algum sentido mais prazeroso.

Domingo que dói mas impele a  sair recitando poesia pra si pelas ruas e aquecer a imaginação com leituras e viver cada livro e inspiração tendo o olho da águia como controle e obstinação. Avante e acima.

A Bahia ainda há.

Marina Lima e Samuel Rosa: Pra Sempre


Eu tenho grude nela.
E esse rapaz do Skank já me fez chorar muito.
Os dois aqui. Ainda é sábado e o último de agosto ( graças a Deus).
Marina Lima e Samuel Rosa: sem respostas porque não há perguntas: os dois. E me basta.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O homem


Nunca saberia deixá-lo para fora do visível. Nem o desacataria a favor do esquecimento. Ele era a luz matutina que brotava com a brisa numa cidade litorânea qualquer. Sua boca era fruto da universalidade e a falta de voz expressão do seu mistério. Ele escrevia delicadezas, tinha medo da dor. Um corpo que dançava com estrelas, cavalos, peixes, mulheres, pássaros e solidão. Altaneiro em sua magreza elegante e viril. Poeta a declamar Mallarmé, Rimbaud, Baudelaire, a me ensinar sobre mim. Uma chegada como bons presságios; morada da rara beleza como em Maria Bethânia; criador como os anônimos escultores africanos. Fazedor das incompletudes deixadas nos sonhos. Água fresca deslizando pelo tórax ao calor baiano. E ainda assim: ausência.

Sua ausência era minha falta de nome. Estar ali no desenho da pedra esperando. Ter o sol menor que a força do desejo e a sede do encontro. Minha falta de nome nesses dias de profunda escuridão ao sol das ruas da Bahia. Trechos de sua fisionomia na memória dos meus olhos. Trechos da alegria que se esboçava em escritos dispersos no papel. A cor o jeito o tempero a verdade da delicadeza no nascedouro poético de um homem e ele era: o homem.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O inconfessável

Deixe eu tocar neste medo que mora em mim
E separá-lo da alegria pelo poema que hoje li.
Quero confessar os caminhos da minha saudade.

Ex possível (II)

"Vai me ver com outros olhos
Ou com os olhos dos outros?"

Ela olhou assim:

Meu lugar era ali por detrás desta dor de agora. Era mais que fantasia ou misericórdia: era eu existo. Percorria luminosa esse cotidiano de peso e inabilidades. Tinha a sofisticação dos sonhadores. Eu me via na frente do espelho. Minha imagem sorria para o que melhor em mim pululuva: esperança. Acreditava em santas, em gnomos, em paisagens. O verde me secava as lágrimas; o verde me levava às lágrimas. Uma flor no cabelo, muitas outras arranjadas num vaso, o corpo perfumando a alma. Tocava minhas estrelas imaginadas, inventava canções e escrevia bilhetes; adorava escrevê-los a um nome de homem amado. Catava pedras à beira do rio. Encenava meu casamento, filhos chegando, poesia esparramando-se por sobre o meu silêncio. Toda minha força vinha deste silêncio que me alojava no centro das pessoas misteriosas. O mundo era possível e eu acreditava.

 Ela falou assim:

O que vejo é nada. Viver é nada quando olho-me ao espelho. As flores apodrecem, as pessoas morrem e ninguém me ama. Isolo-me dos que sorriem  dementes. Incomodo-me com os silenciosos. Brado e brigo e amo o negro do meu vestido que me leva aos bares. Tudo que desenhei é o lugar do meu ex possível. Sou a aparência de uma personagem literária que morreu atropelada. Eu sou mais uma mulher atropelada pela vida. Eu sou essa vaga com a boca pintada frente ao espelho esperando fevereiro.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Nebular


Estranhando os nomes que me acendem. Desocupando-me da missão de registrar o sublime e indo para onde haja silêncio. Embassado nisso de ser eu mesmo. Estranhando-me à altura da delicadeza que me sufoca e não consigo me desvencilhar. A ternura, em última instância, é o meu ofício. Nado até as nascentes do tempo quando comecei a ser; me assombro com o que me tornei e camuflo de palavras erguidas numa quase escritura - desejo que me define.

Estranho a forma e ajo a transfigurar. Soube do que ensinam os mestres e desaprendo como  acinte e como história nova a contar sobre esses desenhos sem luz que me mostram, às vezes, ao mundo. Meu grito na garganta. Minha criança nadando tão longe de mim na cachoeira nascida dos meus segredos. A falta da grande poesia. Quem lerá? Deixo os nomes que me acendem e fabrico artifícios na falta do verdadeiro contar.

Uma vez era eu solto na profunda admiração. Solto, escorrendo em avalanches, sem propósitos a não ser sentir, na ânsia de me ter dentro da escrita e do silêncio majestoso da obra de uma mulher. Era eu me sendo sem espelho frente à imagem dela. Delicada pergunta sem saber existir. Era eu vagando na sonoridade sagrada dos tambores e selvagem para ter algum tipo de salvação. Eu - devassado nessa falta de poder.

Destino. Desatino. A sombra deles como minha. Palavras sem dinheiro. Vasta estrada sem ter como caminhar. Transporte interno. Estranhamento poético. Meu sexo na mulher. A sobra de luz no poema debaixo da mesa. A calma dos traidores. Vento no meu respirar quando respingo letras na prosa da escritora. Tonturas na explicação. Vertigem do olhar.

Paisagem dilacerada. O externo que extermina. O interno que enlouquece. A vida. Isso do nada será como antes. Aquilo do não dever ser - como antes. Respostas espremidas no canto do quarto. À espera. O frio condutor das lágrimas molhando o caderno. Saudades da diva. Sentido crepuscular. O tempo pesando. A ida.

domingo, 21 de agosto de 2011

Maria Bethânia, Tigresa


Era aqui a ideia da invenção dos lugares. Aqui: meu susto por numa única canção redescobrir o mundo. Aqui esta canção aberta com um poema de Fernando Pessoa. Tigresa que ouvia na voz de Bethânia, de Gal e de Caetano. Tigresa associada a Sônia Braga, que eu entendia como Gabriela. Aqui o mundo governado pelas mulheres.

Dando tempo para passar agosto. Tomara chegar logo setembro, flores e iyabás, águas de meu Pai Oxalá! Ouvir Bethânia, para em mim, afastar este cansaço. Força, ouvir para ter força e alcançar qualidade.

Juliana Ribeiro: artista da Bahia


Ate o sol comungou, neste dia 21 de agosto, no Parque da Cidade, no anfiteatro Dorival Caymmi, presença maciça do povo baiano, com a estética reluzente do CD Amarelo, da cantora Juliana Ribeiro. Às 11 horas, manhã epifânica, se confirmou esta menina como um grande talento consolidado na Bahia, prontíssima para navegar os mares do Brasil e do mundo.


O canto envolvente, o repertório mesclando inovação e pesquisa para trazer o melhor samba feito no Brasil. E ainda teve samba reggae, semba, lundu, maxixe, jongo e Ilê Aiyê. Tudo para expressar a festa musical que a cantora pesquisadora e compositora traz para atestar sua qualidade e orgulhar a Bahia com sua trajetória de luz.

Um novo tempo. Tem que ser. Sandra Simões, Claudia Cunha, Manuela Rodrigues, Stella Maris, Carlos Barros e tantos outros, reacendendo possibilidades musicais lindíssimas em nosso território.

Um novo tempo para se marcar a continuidade da voz Márcia Short, show de experiência, cantora brasileira, luz e pedagogia em tudo que for canto no estado da Bahia.

Juliana me arrepiou a pele. Linda em dois figurinos lindíssimos. Louvando em respeito os orixás, como o meu controle de qualidade Maria Bethânia. Marcando o samba com elegância, em consonância com Mariene de Castro, a gente dançou o que a Bahia também tem.

Agora, é navegar outros mares e seguir em sintonia com a alma da gente. Sabendo grande Juliana: ainda não é o tempo da posse da diva. Por enquanto, é a cantora criativa que deve espelhar uma terra, uma gente que tem na arte musical popular a sua mais forte expressão com a vida. Seja inteira, faça música, sonhe com a gente que precisa desse novo tempo. Amo seu trabalho e espero poder lhe cumprimentar sempre!

Meus dias, nesse final de agosto, será todinho Amarelo, graças a Oxum se permitindo na garganta de Juliana Ribeiro.


Narrativa em amarelo


Há sempre uma pergunta a lhe fazer. Sempre essa falta de entendimento em mim. Os lugares onde não estarei são os que mais me fascinam. Você não responde. Essa vacância entre medo e desejo e A volta da Asa Branca, na voz de Caetano Veloso retirando-se do exílio, a nos embalar na distância o nosso excesso de sentimento. Há respostas em mim também. Mas não as quero.

Hoje tem sol lá fora, mas continuo a narrar por dentro. Vivo de imprecisão e lamento. Choro para fertilizar o mundo. Mas, ainda melhor, eu rio também. E danço. E sinto os versos que você cessou e abortou por mim. Hoje tem música nesta cidade. Música em amarelo para iluminar e enriquecer a vida. Queria que estivesse aqui. Ao som amarelo na voz de ouro da menina. O mundo, ali, passará por mim e eu só danço samba e candomblé.

Há sempre este vento lhe trazendo. Determinações de Oyá - o que não posso questionar, muito menos impedir - que me chegam para lembrar o que eu nunca esqueci. Esse dia em amarelo. Uma cor da Iyabá do amor. Uma cor das riquezas e da indiscrição. Outra forma do exagero em mim. Outro sentido da paixão.

sábado, 20 de agosto de 2011

Olhar Maria

(Foto retirada do Terra Magazine//Fernando Goldgaber - Museu Afro-Brasil)


O que olha dentro da gente e vasculha como fogo queimando.
Reflexo de um poder criativo que inspira e amedronta.
Olhar das zonas secretas do humano enquanto animal.
Espécie que voa e rasga os céus.
Voz que se dá asas.
Olhar que nos abre a percepção.
- Olho d'água -
Por onde brota beleza.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Maria Bethânia, Um indio


Aí: a coragem de ser. Uma das canções que mais amo. Uma história contada  a partir da genialidade e do querer de transformação de Caetano Veloso, na voz dela, Maria Bethânia. Uma canção que supera grande parte de tratados antropológicos sobre o índio. Uma canção que se alia, e não foi por isso, ao pensamento poético e magistral de Eduardo Viveiros de Castro. Uma canção que me silencia às vezes, noutras me faz declamá-la. Os bárbaros da minha vida juntos.

A coragem de ser dela: Maria Bethânia. Um índio, de Caetano Veloso. Centenas de aulas minhas tiveram esta história contada desse jeito. Outras centenas também terão.

Fernando Pessoa




"...Viver não é necessário;
o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida;
nem gozá-la penso.

Só quero torná-la grande,
Ainda que pra isso tenha de ser meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda humanidade;
Ainda que para isso tenha
de a perder como minha..."


- Fernando Pessoa -

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Maria Bethânia: flâmulas da inspiração


"Asas que não possuo por muito peso que tenho"
Ana Basbaum/Roberto Mendes


Entre o vermelho que penso e o meu coração azul  no peso que sou - me obrigando a dizer sim. Essa noite de receios que tento apagar com músicas mas meus ouvidos são só palavras para além do sublime do violão que bate. Viajo pra dentro desta fuga, imagem. A mulher presente. O sorriso que canta na voz que sente a dor que me comunga. Meus pés saem do chão através do que ouço e vejo a minha falta de asas. O meu lugar é o não lugar que ocupo com palavras e música. Eu estou nos olhos dela. Um segredo me guia àquele silêncio. Eu nos olhos dela num instante de paz. Ela - amazonas da inspiração de um país que já não pertenço, fui expulso por inabilidade e incompetência. Ela - me redimi do pecado da não pertença. Choro nos olhos dela murmurando palavras quando ela canta. Eu - uma criança solta ao vento daquela inspiração.

A voz corta o ar e o negrume do céu. Estar à noite à porta da entrada da alma da artista. Guia e silêncio. Meu medo por dentro dos olhos dela. O peso de não saber existir. Essa sofreguidão que não cria nem transgride. Outro mundo dos olhos dela acima do palco. Um instante com asas.

Incidência de luz sobre meu corpo cansado naquele canto pra subir. Não quero espelho, quero por mim a imagem da cantora. Séria beleza dos lugares mais profundos: não me sei chegar ali e busco ardendo inutilmente. Essa noite começa para não terminar e a voz agora está no cantor.

Ela volta só com os olhos  para me intimidar e impelir a outras fugas. Ponho poemas no bico dos pássaros que dizem e voam por mim. Passarinhos quase águias de tão reverentes. Fujo em desbragado medo, na ânsia que compõe e modifica. Fujo levando segredos e fazendo encanteria. Ela volta na voz cantando pra mim. Cenas do meu desbunde existencial alimentado em flâmulas de um canto que brota dos mistérios de Deus.

Márcia Short: quando a grandeza é ofuscada pelo racismo

Marlon Marcos
De  Salvador (BA)


De fato, existem várias teorias da comunicação, além dos movimentadores cotidianos que fazem isso que chamamos mídia, que analisam e ratificam o estar ou não de vozes no cenário do show business, atuando como artistas e, ao mesmo tempo, como produtos vendáveis comercialmente.

Muito se fala que a Bahia é um celeiro produtor e exportador de talentos musicais, desde ícones eternos como Dorival Caymmi e João Gilberto, até fenômenos de massa como Ivete Sangalo, a Bahia pautou e ainda pauta produtos comercializáveis em todo o Brasil.

Assim como existem critérios de noticiabilidade para a prática jornalística, que nem sempre estão coadunados com os princípios desta profissão, existem também, às vezes de modo ainda mais perverso e dissonante com o estar co-existencial dos indivíduos, os critérios que agendam vozes, rostos, corpos, os possíveis "talentos" que nos são vendidos cotidianamente.

Para além da necessidade de uma constante novidade no mercado, da exigida descartabilidade, do facilmente digerível e do que "acontece" como fenômeno e espontaneidade, existem substratos históricos e sociais que conduzem o mercado a oprimir e alijar membros, por vezes talentosíssimos, por não representarem o padrão hegemônico e não possuírem poder de barganha com as forças que instituem as leis e criam as brechas que trazem à luz algumas exceções desta terrível regra brasileira.

Este artigo fala fundamentalmente da experiência baiana. A Bahia da "Axé Music", que sistematiza uma poderosa indústria cultural local que ressoa por todo o continente brasileiro. A Axé Music de suma importância para grandes feitos que os baianos, bebedores do que se conhece como culturas luso-africanas, geraram e produziram carnavalescamente em nosso estado. Axé Music que vem dos negros, que exalta os negros, mas grande parte da lucratividade repousa, quase num sentido de eternidade, nas mãos dos brancos classe média que deram continuidade à máquina do trio elétrico.

Por mais que não queiram ver, o que se tornou um dos melhores carnavais do Brasil, dito por muitos como o melhor, é um carnaval sustentado pela exclusão. E o ponto máximo desta exclusão é deixar de fora os negros que deram alma a quase todos os projetos que configuram o carnaval de Salvador, desde os entrudos até as feições deste carnaval na atualidade.

Paira no ar a pergunta sobre a perenidade de alguns artistas entre nós. O Chiclete com Banana, por exemplo, sem qualidade musical, é um fenômeno de décadas. Ivete Sangalo, dona de um carisma poderoso e ótima cantora, vai pelo mesmo caminho da eternização. Daniela Mercury é a mais completa artista na música carnavalesca da Bahia, a que se renova com talento, passeia com categoria por outros estilos mas também se beneficia com o fato de ser uma mulher branca. Claudia Leitte é a síntese da força do discurso racial na produção de estrelas: loira, bonita no padrão, jovem, mas bem longe de ser cantora. Temos outros nomes que oscilam entre as reflexões apresentadas, que vingam por conta do esquemão empresarial de seus blocos lhes dando segurança e continuidade.

Ora por dentro, ora por fora, temos uma das divas mais importantes desta história: Margareth Menezes que, muitas vezes, foi excluída da "beleza" da folia baiana, sem ter o espaço merecido, acusada de desafinar, de não cuidar bem da carreira e, claro!, de não corresponder a estética de "feminilidade" que a política do trio exige. Hoje, ela compõe bem o personagem, ainda com dificuldades, se marca como uma das três vozes do carnaval baiano se sustentando comercialmente.

E Márcia Short? A menina da extinta Banda Mel tem que ser extinta também? Será que não se ouve a especialidade do seu timbre, a limpidez do seu canto, sua experiência como cantora de verdade que poderia estar no time das melhores cantoras disto que chamam de "MPB"? Será que não se alcança a beleza marcante daquela mulher mãe de dois filhos? Não cabem no carnaval da Bahia as legítimas filhas das nossas culturas negras?

O que é uma cantora? A nova gestão cultural do Pelourinho, a cargo do Centro de Culturas Populares e Identitárias da Bahia, deu a chance de Márcia Short fazer uma prévia do que ela é capaz, num palco ou num trio elétrico, e a mesma, nos dias de quinta-feira, reúne uma platéia grande e qualificada, para cantar um repertório reluzente que conta a história da Axé Music. Ressaltando: reúne para cantar. Ela tem domínio de voz, conteúdo estético que faz a gente sentir sons e palavras e dançar ao mesmo tempo. Não é o tal do "pula aí", "levanta as mãozinhas", e tome a sacudir os cabelos e a dar com as mãos em excessivos acenos para evitar os desafios do microfone.

Márcia Short tem 45 anos, uma carreira com quase 25, referendada por nomes como Lenine, Chico César, Elba Ramalho, Saul Barbosa, Caetano Veloso, Daniela Mercury. Ela traz uma tradição de vozes negras da Bahia que suingam e embelezam nossa produção local e nacional. É uma presença ausente que envergonha a nós que conhecemos o seu talento e os motivos locais do seu "afastamento". Talvez ela nem queira mais fazer "carnaval"; mas cantar é a alma desta mulher que vaga de projeto em projeto enquanto as animadoras ganham rios de dinheiro com o status de cantora.

Por trás dos impedimentos a Márcia Short, para além da fatalidade de que ela já teve seu tempo, existe o gosmento racismo brasileiro pautando nossos desígnios artísticos e festivos. Deveria existir na Bahia, dentro dos planos de Políticas Culturais, projetos que alimentassem não uma cena alternativa e sim, o que de fato há, uma cena co-existente com a Axé Music, que permitisse a gente ser mais que o "auê" do carnaval.

Quanto ao racismo, ele não acabará por decreto e nem ao meio de novas Políticas Culturais. Mas, precisamos dar ao talento o que é do talento e situar artistas, como Márcia Short, nos lugares que são seus e nós precisamos deles na ativa.

Publicado no TERRA MAGAZINE (16/08/2011)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Clarice: "lis no peito"


Eu sei que deveria buscar novos lugares e sair de entrelinhas e imagens que me deixam em mais fragmentos. Novas rotas e olhares que me lançassem para o externo e eu, de fato, visse. Eu sei que vejo nisso de ter a verdade que se desdobra no que preciso inventar para sobreviver. Os fragmentos abrem-se para que eu possa respirar. Lido com essa insistência minha de construção na figura que transborda fome literária em mim. Tomo posse do alheio em suas lições do sublime e da vida que dói, fascina e morre sendo eternidade.
Eis um passeio: colho as flores que ela descreve. Rezo preces que ela silenciou. Imito sem qualidade a movimentar este amor que me alucina. Perco a vida naqueles textos e me reinvento sem saber o quê. Perco a vida para ser e sendo, sou alvo do meu próprio anseio a escrever o que sangra em mim e ainda é o sangue dela.

fragmentariamente inteiro

" eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar"

"O querer, não mais movido pela esperança, aquieta-se e nada anseia"

"Eu sei que Deus existe"

"de fracasso em  fracasso, me reduzi a mim mas pelo menos quero encontrar o mundo e seu Deus"

"Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era"

"Chaya bat Pinkhas"

"Parece que eu ganho na releitura, o que é um alívio"

"Acho que é o meu nascimento e o seu mistério"

Deus não mata ninguém é a pessoa que se morre"

"Minha vida é feita de fragmentos"

Isso vai continuar...

Nova peça de Zé Celso prega a volta da antropofagia na sociedade

Em Macumba Antropófaga, Zé Celso invoca Oswald de Andrade contra a caretice atual

Para comemorar 50 anos de sua sede no bairro paulistano do Bixiga, o Teatro Oficina Uzyna Uzona vai estrear no próximo dia 16, às 21h, sua mais nova produção: “Macumba Antropófaga”, que é baseada no “Manifesto Antropófago”, escrito em 1925 por Oswald de Andrade. O espetáculo fica em cartaz até o dia 2 de outubro, sempre aos sábados e domingos, às 16h30, pedindo o fim da sociedade papai e mamãe reacionária e opressora.
Sob o comando de Zé Celso, o Oficina vai transportar as ideias oswaldianas para seu espaço em um enredo que mistura Freud, Tarsila do Amaral, Maiakovski e o próprio Oswald para pedir a união da tecnologia atual com as ideias antropofágicas do escritor brasileiro – que pregava que os povos colonizados “comessem” a cultura colonizadora e “vomitassem” algo de novo, de próprio.
É um retorno ao Homem pré-moral cristã, que cobriu os corpos dos índios e construiu uma sociedade baseada em títulos como pai, mãe, empregado, padre, etc. “É uma obra de arte, é um manifesto de cultura que virou o Brasil de ponta cabeça realmente porque captou o Brasil mestiço”, conta Zé Celso ao Mix, explicando que Tarsila e Oswald se dão conta de que vivem em um mundo totalmente construído pela moral e religião durante um jantar onde comem uma rã.
“Quando eles comem a rã eles ficam doidos, eles se despem no restaurante e vêm correndo pra cá, onde fica o jardim mítico do Manifesto. Eles têm uma noite de amor e nessa noite ela pinta Oswald nu e quando chegam os índios cantando ela pinta o ‘Abaporu’, enquanto ele escreve um livro de carne vegetal e animal, que é o ‘Manifesto Antropófago’”, adianta Zé Celso.
“Macumba Antropófaga” – de 20 de agosto a 2 de outubro
Sábados e domingos, 16h30
R$ 50 (inteira), R$ 25 (meia) e R$ 10 (moradores do Bixiga, mediante comprovação de residência)
Teatro Oficina: Rua Jaceguai, 520 – Bixiga
Tel.: (11) 3106-2818
16 anos

Retirado do site MixBrasil ( Cultura GLS).


domingo, 14 de agosto de 2011

Eu

Na órbita de um sonho musical.
Virei água escorrendo
Para ser minha própria natureza.

Leia na minha camisa


O seguinte:

me ensina a conseguir estar sem me arrancar de mim.
me leva de volta ao não lugar onde nos encontrei.
e me recita a paz que vejo nos seus olhos.
mas tire as mãos de mim, desfaça os seus comandos.
minha mensagem sou eu sangrando.
o que me estanca e dá vida são seus olhos
desaguando alma sobre mim.
eu sou minha camisa, baby.
 e ainda não aprendi inglês.
sigo leve doendo o rastro do seu caminho.
tenho medo demais hoje.
amanhã serei mais sozinho?
o tempo também passa por mim
e me perco se faltar esperança.
conto suas canções a eles
e eles cantam.
perdi -me frente ao espelho
que deixou de ser espelho
para ser instrumento musical.
nada sei tocar ou deixar azul.
mas pouso como ninguém
meus olhos sobre você.
entro nessa qualquer coisa
violenta e silenciosa: sua voz.
tenho medo demais hoje.
seus signos marcando minha pele.
o que há de mim
na alma que você me  deu?



sábado, 13 de agosto de 2011

Clarice Lispector: entre refugiada e estrangeira, a maior escritora do Brasil.




A pequena Chaya Lispector, chegou ao Brasil com um pouco mais de 1 ano, refugiada das perseguições sofridas pelos judeus durante a Primeira Guerra Mundial, na região do seu nascimento, que compreende a Rússia e a Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920.
Já no Brasil, primeiro em Maceió, Chaya recebeu o nome de Clarice, com o qual ficaria eternizada como uma das mais importantes escritoras do século XX em todo o mundo. Dona de uma linguagem peculiar e de textos literários difíceis de serem classificados, Lispector é hoje a mais estudada escritora brasileira. Segundo relatos de Benjamim Moser, escritor estadunidense que escreveu a mais completa biografia da autora até hoje, Clarice Lispector é o literato do século XX mais analisado academicamente no mundo.
Um grande séquito a tem como divindade literária. E para além dos exageros, os anos passam e nos afastam de 1977, ano da morte de Clarice, no Rio de Janeiro, tornando-a mais viva e amada por antigos e novos leitores.
Seus textos marcam nossas dores, nos ensinam a nos enfrentar, a buscar resposta, a fazer silêncio e, existencialmente, a perguntar. Uma literatura de transcendência, recheada de fragmentos poéticos com imagens delicadas e sedutoras e que nos acompanham vencendo nossa solidão, amenizando nosso desespero.
A vida de Clarice se inclinou a escrever e a querer pertencer para aplacar suas sensações de estrangeirismos que a faziam sentir-se vagando por todos os lugares sem “ser” de nenhum. A mulher que dominava a língua portuguesa e que, nesse idioma, revolucionou nossa literatura, parece ter escrito sobre suas dores mais intensas aliviando em si, o seu estar no mundo entre refugiada e estrangeira.
E hoje é, completamente, um gênio brasileiro que muito sustenta e desperta a criatividade do nosso povo. Algo imprescindível à alma e à educação de quem cresce e vive no Brasil.
Marlon Marcos é jornalista e antropólogo




Das águas

Para Michelle Cirne

E a água disse: é mais que sonho. É a vida abrigando-se no mistério da vida, num jeito de alívio e frescor, é a beleza se movimentando. Cheiro humano ofertando-se à calidez das águas para imprimir outra forma de sentido. Essa coisa do renascer por dentro, do ventre de si mesmo, nas correntezas que nos levam ao nosso amanhecer. Amanhcer em sábado novinho de esperança e o vento frio na cara.

Quando a água diz: é puro sonho, potável, irrigado de fé... Sonho que impele e dá transporte para os rios que nos levam a ser na vida. A água toca a cara e nos acarinha com nossas próprias mãos; nos banha de cachoeira e existir ali dentro  é um todo feliz. Um bom dia.











quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Reynaldo Gianecchini: saúde!

Contra os invejosos, agourentos, maledicentes; os perversos, intrigueiros que fustigam o outro por incompetência e infelicidade. Os que doem de feiúra e inércia, os sem poesia, sem viço, sem leveza, sem coragem...
Saúde e força para ser o que se é, fazer o que se tem que fazer e viver inteiro, trabalhar e melhorar, contribuir para um mundo menos depressivo, menos ordinário, menos bolsonaro.
Ensina-nos sua doçura que traduz beleza em você por fora e por dentro. Não lhe deixem exigir perfeição; se proteja com fé e alegria: a mediocridade mata e a gente precisa se curar.
Altivo, altaneiro, a mirar o longe, os sonhos; se ter em perspectivas da verdade que pulula e impele a gente a fazer o melhor por si e por muitos outros.
Cura-te: já é assim e são aqueles que devem morrer.

Claudia Cunha como Gabriela

Foi uma noite amadiana, entre muitas cores, reflexões sócio-antropológicas pairavam no ar... O palco do TCA esperava Mia Couto para fazer uma palestra memorável, elegante, erudita, centrada, poética, reverente, simples e doce: apaixonante o escritor de O último voo do flamingo...
Antes, atores relembravam, sem brilho, personagens de Jorge... De repente, uma voz cantando se passou por Gabriela; voz afinadíssima pertencente a uma mulher vestida de vermelho, arranjo florido na cabeça, esguia e leve como um pássaro, tomou de assalto os olhos e a audição da platéia e foi a grande revelação da noite.
Uma platéia fria ou assombrada com que via e ouvia naquele célere instante? Perguntei-me um pouquinho, só um pouquinho, porque não poderia perder o que senti, ali, ouvindo Gabriela cantando. Gal estava ali também, no palco, como herança da grande e jovem cantora... Meus Deus, uma mulher como epifania e eu sentindo a beleza do mundo, da minha negra Bahia, a falar do meu amado Jorge e esperando dois mestres que chegariam, Mia já foi falado, o outro: Mateus Aleluia!
Noite exitosa encerrando o excelente Conlab que a Bahia proporcionou. Parabéns a Jamile Borges, Adriana, Fernandinha, Luiza Reis: meu povo lá do Posafro.
E mais que tudo: parabéns àquele transbordamento em minutos! Claudia Cunha, eu te amo!

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Jorge Amado, 99 anos


É claro que ele não faz falta, porque nunca partiu. Se deixou entre suas histórias que contam histórias do lado mais intenso da gente. Musicou essa Bahia literária de Caymmi, misturou sementes; até me iludio quando comecei a estudar pra ser gente, e por instantes, passei achar ele um escritor menor. Esta é uma das minhas vergonhas maiores. Jorge é gênio nosso, patrimônio vivo dentro do meu peito que eu canto e proclamo para mim mesmo como incentivo a fazer o que a alma deseja e quer desenhar comunicar eternizar viver. Quase não respiro de emoção. E escrevo assim: meus fragmentos festivos em nome de outro homem leonino baiano, de Oxóssi, que também me ensinou a ler. Meu camarada Jorge, o senhor mora em mim.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

O mundo é sem perdão.


Eu deveria descrever os instantes lá fora. Captar a mágica de cada vida saindo pelo olhar de quem passa e nem me olha. Secretamente, alcançar os mistérios cotidianos que nos levam a seguir. Deveria me abrir a um tipo de respiração que incentiva a recriação, a reinvenção, a ressignificação, a re... Ver gente imersa no cumprimento do seu ser: tudo no nível mais simples: só ser. Tentar ajustar os fragmentos que percebo nos outros e entender aqueles  que me  fazem, os que sou eu.

Deveria ir a campo. Estimular minha poesia pelo viés metodológico da antropologia, aprender a escrever com profundidade, com forma, a partir de sensações geradas por meus olhares que perguntam. Ir ao outro numa dança de muitos neste tempo de ninguém. Ir para o que vem, o que se deixa mostrar, o que se apresenta com força e sentido e deixar o dessentido para as horas da grande solidão. Ir pelas cavernas do centro de Salvador, ultrapassar a beleza do povo e ver para além da dor de viver sem saber, sem objetivar.

Eu me faria essa espécie de escritor que já sou, revelado a mim pela legitimidade das ruas em descrições que não contam, transparecem sensações que enovelam a existência na dinâmica da convivência que não se pode evitar. Nasceria óbvio e obtuso - mas, a comungar com o mundo que insiste em fragmentar nossos sonhos e a retalhar o que chega diferente e a contaminar  com o nome de absurdo: o que está à frente mas, sei não, eles às vezes não querem, outras não podem, enxergar.

O mundo é sem perdão.

O que não foi mas é

Alguma coisa bem ali: no indizível.
Algo à maneira de querer diferente
E o sol, visto da janela, surfando o mar.
Ali, vagas de perguntas e o sonho;
Um livro ensinando o que seguir.
A quentura do amor imorredouro.
As águas da distância que ficou.
Esse desenho do algo avermelhado
Para evitar respostas diluídas...
O indizível é a totalidade do que sendo não
Deveria ter sido sim.

Clarice Lispector: escrita terapia


No sentido de utilidade maior: comunicar para atingir o outro atingindo-se. Escritos terapêuticos dentre outras funções que abastecem os "sabidos" da literatura, os críticos do plantão azedo. Terapia para respirar, acompanhar, perceber, falar e mais que tudo: para calar profundo e voraz. Assim:

" Quanto ao fato de escrever, digo - se interessa a alguém - que estou desiludida. É que escrever não me trouxe o que eu queria, isto é, paz. Minha literatura, não sendo de forma alguma uma catarse que me faria bem, não me serve como meio de libertação. Talvez de agora em diante eu não mais escreva, e apenas aprofunde em mim a vida. Ou talvez esse aprofundamento da vida me leve de novo a escrever. De nada sei".
( Benjamin Moser, Clarice, p.444)

domingo, 7 de agosto de 2011

A hora de terminar

E passará tudo... até este medo da noite num domingo deserto e barulhento... até a falta de vento que piora a sensação de escuro. Até o susto de um homem caído ferido ao chão. Até o sangue sujando o pensamento.

Não ficarão escombros desta noite nos vestígios de algum dia. O futuro será o que nunca se soube. O desejo engordando. Retas incompletas atropelando o caminho agora. Ficará o olho da estrela vigiando. A vida deverá ser sem repetições.

As perguntas secarão pois as respostas serão suficientes. Espelhos serão quebrados. A imagem se passará como única. A violência vencerá?

O que nunca se soube. A hora de terminar. E a certeza de que tudo passará para dar rumos a novos caminhos que muitos não mais poderão.

Caetano Veloso, 69 anos

"Aquela antiga madrugada"

Muito mais que dentro: morando em mim. A palavra me singrando e me fazendo alcançar o mundo. Daqui, minha nada sofisticada eletrola, e a voz artística e professoral do homem. Um símbolo de coragem e das criações devidas: poesia construída a me ensinar a ser. Mas eu nunca fui. E ainda ouço. Ele me chega na hora das madrugadas entre sentir e refletir o peso da existência. Alimenta antigas esperanças me abrindo décadas passadas quando ali só sei ser menino aprendendo por aqueles discos que me fizeram eu. 

Ele - minha vida acompanhada de desejo e inspiração; acompanhada da fantasia e perdida na  força da razão que ele traz. O cantor do tempo. Audição sexual. Expressão profunda do que se comunica à posteridade: mudanças radicais numa nação.

Ele - o audaz. Um ontem de tantas perguntas e hoje com respostas demais. Explícita beleza que me combina e a história de tantas tentativas por instantes conjuntos com humanos mais sensuais.

Meu retrovisor mais sutil me mostrando o popular na beleza sem igual de Trem das Cores: sentido que põe leveza no meu ser clariceano. Luz leonina em minha cara geminiana: místico pôr-do-sol em todos os lugares dos meus sonhos. O imprevísel.

Por amor: o inesperado bom.  O azul turquesa da esperança que aquele Odé deposita em mim.

Maria Bethânia : Eros e Psique


O meu primeiro grande impacto da poesia na voz de Maria Bethânia: me veio com Eros e Psique. Minha adolescência começava  a entender que minha Casa Real seria, para todo o sempre, a Poesia. Melhor quando dita por minha rainha na Música Popular Brasileira. Essa é a minha eternidade.

sábado, 6 de agosto de 2011

Maria Bethânia: a palavra-mensagem na voz dela


Muitas vezes é preciso dizer não!
É preciso se reconstruir!
Construir novos caminhos!
Inventar uma nova vida!
Fazer da força asas
E voar...
Da palavra, criar
Coragem.
Dizer não
Por respeito a si mesmo.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Desconstruções antropológicas


Os seres humanos são os fazedores de si mesmos. Inventam-se ao longo dos tempos, promovem-se, codificam-se; agrupam-se em torno de infinidades de sentidos que espelham suas tramas culturais. Os seres humanos são esses inventos deles que são eles para além do físico. E são o físico personalizado por seus traços culturais inventados. A invencionice que constrói é a mesma que destrói e eles seguem assim.

Os seres humanos se são malefícios e benefícios e tantas vezes sem explicação. A composição de um tempo sem temporalidade muitas vezes. Investem sua verve para a noção de desenvolvimento e daí criam as terríveis hierarquizações. Aquelas que alimentam suas invenções- idéia de atrasos, primitivismos, barbaridade, não-saber: violências consigo mesmo este humano solto nas idas e vindas nessa existência do tempo.

Os seres humanos vez em quando precisam ser desconstruídos e ser desafiados a favor da mudança. As culturas são puro movimento e a mais reacionária das tradições se altera se modifica se areja se re-conduz. Todos os traços. As perguntas. As respostas. E as deidades chamadas dúvidas.

Os seres humanos tocam piano, vão à lua, não aprendem a ler, matam baleias, se-nos-matam. Tudo que eles são só tem sentido diante do outro. O outro é seu acinte agrura perseguição. O outro empreende suas formulações; o outro que são eles em diferentes versões. O outro que está dentro do eu. O outro sem o qual não há.

Bilhões de mundos são os seres humanos operacionando educações: cada um em si ansiando o outro em abrigo ou em negação.

Tenho que me mostrar tenho que me mostrar tenho que: mostar. Os que se lançam à verdadeira sabedoria fazem silêncio e profundas desconstruções. Vencem a maioria dos seus medos. Em seus tratados, como alavanca da transformação, escrevem como não-tratados e macaco toca piano, cego ensina a enxergar, o menor desequilibra o maior, o cadeirante dança, a poesia renasce, o amor se segreda, a literatura se espalha e melhor que tudo exposto aqui: novas possibilidades. Infinitas como os mistérios que movem os bilhões de mundos individualizados como ser humano.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

fundo raso vasto

Fundo.
Bem lá brilhando e apagando.
Sendo-me ceia e sono.
Uma canção de amor,
Seu beijo por brincadeira.

Raso.
A silhueta do seu tato
As mãos quase em mim.
O sorriso apagado na fala
Os olhos em lágrimas
Nos chamando.

Vasto.
O abismo nasceu aí.

Obsessão

Dessa coisa em mim que me sufoca e barulha
A imensa vontade de lhe bater na cara.
Desses seus dias  imundos onde o que lhe salva
Sou eu.
Dessa estrada, minha fala em você, suas asas.
Sua memória é minha casa.
Vivo a lhe dizer.
Desse rastro incompetência
Que sigo pra lhe ter...
Dessa mão lhe dando adeus,
Nossa eterna desavença,
Fim das brincadeiras no quintal.
Da falta que foi sol
E da presença em chuvas,
Eu e você - caso sério,
Tédio e  obsessão.
Fim do mistério.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Ao toque

No delicado, só podia assim...
Arrumou-se ao espelho e zarpou para o lado alheio. Viu-se na ânsia inteira e queria tocar. Não só com as mãos e sim, com  tudo que fosse corpo e também alma. Pretendia o destino. O espelho não mais prometia.Queria tocar, sem medo sem ressalvas, tocar a parte quente e viscosa da coisa e senti-la.
O mundo sempre lhe fora vibração mas as sensações, metade. Tocar era luxo: era acarinhar o carinho, entender a flor, promover amor, imaginar.
Tocar era mais forte que ser tocada; o exercício mais vibrante do delicado da vida. Sentido solar no algo que não pupulava - mera denúncia.
Ex-estática à procura do toque. Caminho a favor do vento. Intranquilidade promotora. Olhos nos olhos do quase. Coragem. Subida das sensações.
À sua frente: a coisa, entre alegria e rigidez, despudoradamente entregue a qualquer toque.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

QUALQUER COISA CAETANO VELOSO 1975


Dia 07 de agosto de 2011: 69 anos, dele. Número delícia. Lá, 1975,  eu solto no desbunde dele. Para sempre: Caetano Veloso.

Caixeiras do Divino (MA) se apresentam em Salvador através do Projeto Sonora Brasil

O SESC Nacional, em parceria com o SESC Bahia realiza o projeto Sonora Brasil - Formação de Ouvintes Musicais que, em 2011, pela primeira vez apresenta dois temas - Sotaques do Fole e Sagrados Mistérios: vozes do Brasil – a serem desenvolvidos no biênio 2011/2012, ao longo do qual oito grupos circularão por todo Brasil.

No próximo dia 03 de agosto, às 20h, o projeto traz a Salvador as Caixeiras do Divino (MA), grupo que representa a Festa do Divino Espírito Santo, um dos festejos populares mais importantes do estado do Maranhão. Toda a festa gira em torno de um grupo de crianças que durante o período dos festejos são vestidas com trajes nobres e tratadas com regalias. Dentre os elementos mais importantes da festa do Divino estão as Caixeiras, senhoras devotas que cantam e tocam caixas e ainda precisam ter a habilidade do improviso para responderem a situações imprevistas no decorrer das etapas.

O canto, ora em uníssono ora a duas vozes, e suas características interpretativas traduzem a força alcançada pela relação de devoção ao Divino Espírito Santo.

Dona Maria Rosa, Dona Maria de Jesus, Dona Zezé de Iemanjá, Dona Rosa Barbosa e Dona Rosa Dias são as Caixeiras do Divino do Maranhão."



SERVIÇO

O QUE: Apresentação musical das Caixeiras do Divino (MA)

QUANDO: 03 de agosto de 2011, às 20h

ONDE: Teatro SESC-SENAC Pelourinho

(Largo do Pelourinho, nº 19, Centro Histórico)

QUANTO: R$ 8,00 (inteira) / R$ 4,00 (meia)

INFORMAÇÕES: Teatro SESC SENAC Pelourinho. Tel: (71) 3324-4520