terça-feira, 30 de agosto de 2011

Navegações do crítico e "herói vocal" Antonio Candido

"A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização" ( sobre Clarice Lispector).

Claudio Leal (30/08/2011)

Terra Magazine

Distanciado da crítica e da vida universitária, o professor Antonio Candido ressurgiu na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho de 2011, com a agilidade humorística e a alma de conversador intocadas. Para homenagear o amigo Oswald de Andrade, ele aceitou serpentear a serra e enfrentar o frio do inverno fluminense. Da sua prosa escaparam frases que poderiam se aninhar numa crônica machadiana: "Sou uma pessoa de temperamento conservador. Uso bigode, ainda. Os jovens usam barba".
Nascido em 1918, no Rio de Janeiro, mas criado em Minas Gerais e radicado na capital paulista, onde ingressou no corpo docente da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, Antonio Candido é o maior crítico literário brasileiro, autor dos clássicos "Formação da Literatura Brasileira" e "Literatura e Sociedade". Recolhido aos seus romances favoritos, completou 93 anos neste 24 de julho.
"Vocês exageram muito no meu valor. Não tenho o valor que vocês dizem", adverte, por telefone. Nestas antimemórias, ou navegações históricas a contragosto, recorreu-se a conversas de repórter com Antonio Candido, de 2007 a 2011, algumas delas deliciosas somente pela recusa do pedido de entrevista; num desses dribles, com engenhosidade de Mané Garrincha, afirmou que é um homem "fora do tempo", pois deixara de ler obras novas e falar com a imprensa ainda no século passado.
Além desses papos - um deles na entrega do troféu Juca Pato, em 2008 -, houve uma fuçada nos arquivos de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Pedro Nava, na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. Nessas pastas estavam preservadas fatias inéditas de seu diálogo com escritores contemporâneos. E mesmo por escrito, Antonio Candido parece ter aquela elegância e sobriedade de "um mestre-sala" da Estação Primeira de Mangueira, como identificou o contista João Antônio.
Mestre-sala, mas de bigode.

Um recuo na Livraria José Olympio


"Nunca. Nunca". Antonio Candido sempre correu das rodas literárias, do diz que diz das portas de livrarias, das conversas pretensiosas de escritores. "Eu só conheci esse pessoal em congressos. No Rio, nunca entrei na José Olympio", confessa o nada mundano homem de letras. Recorda-se do dia em que viu José Lins do Rego "enrolando a chave na ponta e a corrente do relógio em volta do dedo", no umbral da J.O., na Rua do Ouvidor, 110. Apenas observou-o, sem tirar chapéu, e passou longe.

O retraimento reduziu o contato com grandes personagens do universo literário, como Jayme Ovalle, inspirador de uma penca de escritores seus amigos, de Manuel Bandeira a Vinicius de Moraes. As raras concessões ocorriam na casa da crítica Lúcia Miguel Pereira, sua "prima-irmã" e biógrafa de Machado de Assis, casada com o historiador Octavio Tarquínio de Sousa. O casal morreria num desastre aéreo, em 22 de dezembro de 1959; donde se pode ter uma data exata da despedida de Candido dessa pequena academia de letras. "Ia à casa dela, jantava lá, então vi Bandeira, Graciliano Ramos... Eu fugia dos meios literários, dos lugares que havia escritor", relata.

(Na mesma casa, o jovem Bruno Tolentino - sobrinho de Lúcia, primo de Antonio Candido e futuro desafeto de metade dos habitantes do território nacional - ouviu Graciliano decretar: "Não admito que ninguém admire mais Machado de Assis do que eu!").

Em São Paulo, o crítico frequentava a Livraria Jaraguá, fundada em 1942 por Alfredo Mesquita, na Rua Marconi, 54 - o reduto de Mário de Andrade, de Oswald de Andrade e dos batutas da revista "Clima". "Lá encontrei o Zé Lins, mais uma vez, e o Augusto Frederico Schmidt".

Schmidt, editor de Graciliano e Gilberto Freyre, havia sido cliente do médico Aristides Candido de Mello e Souza, em Poços de Caldas (MG).
"Meu filho gosta muito dos seus versos", avisou.
"Então diga a seu filho que é para me procurar", ordenou o autor de "O Galo Branco".

Beirando os dezoito anos, com a primeira penugem de rapagote, Antonio Candido encontrou o "gordinho sinistro", que lhe recitou poemas num hotel. Em 2011, considera "uma injustiça" o esquecimento da obra do escritor carioca. "Ele é abundante demais, de modo que tem muita coisa que não tem interesse. Mas é um grande poeta", afirma, acrescentando que a vida empresarial bem-sucedida armou seus detratores (Schmidt era proprietário da rede de supermercados Disco). "O fato de ele ser empresário e de ser ligado ao governo (Juscelino Kubitschek). Parece que ele tinha uma cabeça econômica muito boa. Criou políticas econômicas importantes". Em seu ostracismo, o poeta cumpre a sentença de um dos sonetos de "Fonte invisível", numa cadência bíblica: "Em lembrança se irá mudando, aos poucos,/ E dormirá em nós teu sono eterno/ Como se viva nunca fora dantes".

Árvore mineira

Na infância em Barbacena, Minas Gerais, Clarisse Tolentino de Mello e Souza aprendeu um ditado (quase uma lição de genealogia mineira) que retransmitiria aos filhos: "Parente de meus parentes meu parente é".
Antonio Candido aplica a lógica da mãe: "Por essa teoria, Drummond é meu parente". Ana, uma prima da mãe de Drummond, casou-se com Álvaro Astolfo da Silveira, tio do pai do crítico. Dúvida nenhuma: parente é.

O tio-avô "sistemático"

Este Álvaro Astolfo da Siveira (1867-1945) entrou no folclore mineiro pela porta da frente do cinema Odeon, na Belo Horizonte dos anos 20. Nos filmes de sábado, ao custo de "pila-e-cem" (1$100 réis), todos os espectadores respeitavam a poltrona do engenheiro, "um homem muito estourado e muito excêntrico", na definição do sobrinho-neto.

Em "Beira-mar", o memorialista Pedro Nava descreve o cavalheiro e sua cadeira cativa no Odeon, vívidos nas lembranças juvenis de 1921 a 1926: "Acabou a primeira sessão. Esvaziada a sala de projeções, abriam-se batentes de púrpura da cortina de veludo das duas portas que lhe davam acesso. Campainhas tinindo, entrava o pessoal da segunda. Já estava sentado na última cadeira da fila do alto do balcão esquerdo o Dr. Álvaro Astolfo da Silveira. Assistira à primeira sessão e, como era seu hábito, ia repetir o filme, na segunda".

A narrativa de Nava congela os temores de menino. "Ninguém ousava tomar sua cadeira, que aquilo era lugar cativo. E se algum imprudente o fazia, o dono do assento chegava e seco, intimava o abancado a dar o fora. Era obedecido imediatamente porque todos sabiam que ele não brincava".

"Se meu tio não aparecia, ninguém sentava na cadeira dele. Todo mundo tinha medo. Era um homem estourado mesmo", depõe Antonio Candido, que não chegou a conhecê-lo, mas preservou as histórias familiares. Em 1979, depois de responder a uma consulta sobre a publicação da correspondência de Mário de Andrade, o crítico avisou a Nava sobre o parentesco: "Li e gostei muito de 'Beira Mar', onde perpassa o meu sábio e 'sistemático' tio-avô Álvaro Silveira. Continuo fan incondicional das suas memórias, que leio como alta literatura que são". Sistemático, no eufemismo dos mineiros, é uma pessoa cheia de manias, estouvada, inflexível. De pedra.

O diabo Agrippino

Demônio dos diletantes e cronista da vida literária, Agrippino Grieco era uma das paixões jornalísticas de Antonio Candido, nas horas lentas da meninice ávida por frases sarcásticas. Os torpedos do crítico atingiam, com frequência abusada, o presidente da Academia Brasileira de Letras, Cláudio de Souza.
De perversidade, Grieco espalhou que enviava os livros do acadêmico à Casa de Detenção do Rio de Janeiro. Até o dia em que reconheceu o erro: "Pobres diabos! Já sofrem tanto! Para que afligi-los ainda mais com a literatura de Cláudio de Souza?".

As farpas agrippinianas chegavam a Poços de Caldas na garupa do "Boletim de Ariel", editado em parceria com Gastão Gruls, e dos caudalosos artigos nos jornais. Antonio Candido se recorda dos livros de Agrippino na estante de casa e, sem abusar da memória, revê o pai com um deles, "Estátuas mutiladas", ao estilo dannunziano. "Muito superficial, mas engenhoso. Ele era uma voz literária muito viva na época, acessível, todos o liam", relembra Candido.

Crítico representativo dos anos 20, Grieco atravessava o País numa turnê de conferências literárias repletas de blagues antiacadêmicas. E não era dado a perder viagem. Um dia, acompanhado de Salomão Jorge, que repartia salomonicamente o cachê, deu com a língua em uma cidade falida, sem recursos para bancar os ingressos da palestra. A não ser, ressalvou o prefeito, uma pequena verba de "calamidades públicas"...
"Nós somos uma calamidade pública!", fiou Agrippino.
Antonio Candido não se esquecerá de uma dessas conferências em Poços de Caldas. Jamais iria rever o mestre da maledicência.

As descobertas

Para um crítico, "o pior dos erros é acertar contra muita gente", troçava Agrippino Grieco. Titular do rodapé "Notas de crítica literária", Antonio Candido arriscou sua reputação, semanalmente, na Folha da Manhã (1943-45) e no Diário de São Paulo (1945-47). Lançado em 45, o livro "Brigada ligeira" reúne textos nascidos em um período exuberante da literatura brasileira e apresenta escritores do nível de José Lins do Rego, Jorge Amado, Oswald de Andrade, Clarice Lispector, Fernando Sabino, José Geraldo Vieira, Érico Verissimo, Ciro dos Anjos e George Bernanos - este último uma celebridade cultural francesa, que residiu em Barbacena (MG) durante a Segunda Guerra.

A crítica teatral, analisa o jornalista e teatrólogo Sábato Magaldi, sofreu influências do autor de "Formação da Literatura Brasileira". "A presença de Antonio Candido na crítica brasileira foi fundamental para que ela fosse levada a sério. Não que ela não tivesse importância, mas ele lhe deu uma seriedade e uma precisão que se tornaram escola para todos que o secundaram. Depois dele, não houve um crítico que não seguisse o seu exemplo", reconhece Magaldi, membro da Academia Brasileira de Letras. E o respeito se transmitiu aos escritores. O poeta Thiago de Mello emoldurou e pendurou uma carta de Candido na parede de sua casa, na floresta amazônica. À noite, em Barreirinha (AM), quando deseja "ter prazer na leitura", abre "Literatura e Sociedade".

Questionado sobre a contribuição inovadora de Antonio Candido, Roberto Schwarz, autor de uma das obras seminais da crítica brasileira, "Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis", atribui a ele "a invenção de um tipo de ensaio híbrido, em que análise literária, análise social, teoria literária e reflexão sobre o Brasil se combinam de modo inédito, dando ao ensaísmo literário uma força peculiar, inclusive de intervenção no debate nacional".

O prestígio de João Antônio (1937-1996), grande contista surgido nos anos 60, deve um naco aos elogios de Antonio Candido a textos como "Paulinho Perna-Torta". Ele é também um dos descobridores do poeta alagoano Lêdo Ivo. "Quando eu tinha 22 anos, saiu um artigo dele sobre mim. A recepção a ele era muito boa no Rio de Janeiro. Ele descobriu João Cabral e Clarice. Acertou ao descobrir a gente. Só errou com Bueno de Rivera, de Minas Gerais. Ele apostou, mas esse poeta não prosperou. E errou ao apostar em Maria Julieta Drummond, a filha de Carlos Drummond. Mas, na crítica diária, não se acerta sempre", minimiza Lêdo Ivo.

O crítico dedicou um artigo ao poeta mineiro na revista "Clima" de 16 de novembro de 1944. "O sr. Bueno de Rivera manifesta no seu livro influência de outros autores brasileiros, e sobretudo, talvez, do sr. Carlos Drummond de Andrade. Um Carlos Drummond, todavia, que houvesse dissolvido a sua tanto ou quanto rigidez - o baque hirto de certos versos seus - nas larguezas melódicas e quase virtuosísticas de um Vinicius de Morais", avaliou.

Poeta da geração de 45, autor de "Mundo submerso" e "Luz do pântano", ele terminou esquecido pelos leitores, mas o escritor e jornalista Humberto Werneck o ressuscitou nas saborosas histórias de "O desatino da rapaziada" (1992). "É Bueno de Rivera, sem dúvida possível, o Jonas Ribeiro que aparece em "Um artista aprendiz", o romance de formação de Autran Dourado, no qual se disfarçam as figuras mais notórias da vida literária belo-horizontina dos anos 40", entrega Werneck. "Laboratorista do serviço público, não quer saber de contato com as amostras que recebe para examinar - e para evitá-lo concebe o que Wilson Figueiredo, seu colega de trabalho, batizou de 'exame sociológico de fezes': classificava as amostras conforme a procedência, se de bairro pobre ou rico da cidade. Vindo da Pampulha, por exemplo, o material muito possivelmente trazia a esquistossomose, e assim por diante".

Perto do coração

"Tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, escritora até aqui completamente desconhecida para mim", anotou Antonio Candido em seu rodapé no jornal "Folha da Manhã", em 1943.

"A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização", analisou, a quente. Não era um julgamento comum. Na época, o pernambucano Álvaro Lins desferiu uma clássica mancada, ao fazer uma crítica desencorajadora sobre a estreia de Clarice.

O vaticínio de Candido, praticamente uma descoberta, tornou-se célebre. Menos para a romancista. Cerca de trinta anos depois, num encontro literário na PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro, Clarice Lispector passou um bilhetinho para o professor, que estava ao seu lado: "Antonio Candido, por que você nunca escreveu sobre mim?".

O medo

Dez de maio de 1944, passado algum silêncio, Antonio Candido se penitencia em uma carta ao poeta Carlos Drummond de Andrade: "É uma vergonha o atraso e a falta em que estou consigo. Recebi há tempo o seu poema magnífico dedicado a mim. Não imagina a emoção com que o li. Somos mineiros, não digo mais nada".
Era o poema "O medo", publicado em "A Rosa do Povo".

"Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto
(...)".
Drummond pinçou a epígrafe na resposta de Antonio Candido ao inquérito "Plataforma de uma geração", elaborado por Mario Neme: "Porque há para todos nós um problema sério... Este problema é o do medo".
Outra dedicatória do itabirano afagará um dos talentos menos celebrados de Candido. Em 1948, na folha de rosto de "Poesia até agora", com o pensamento nas cantorias das madrugadas do II Congresso Brasileiro de Escritores, em Belo Horizonte, Drummond riscou:
"Para Antonio Candido, o herói vocal das madrugadas belo-horizontinas".

Uma voz na noite

O medo transbordou na ditadura militar de 1964. O professor metódico, amparado em fichas e arquivos, injetava alegorias políticas nos exercícios em sala de aula. Desconfiado dos delatores encaramujados na Universidade de São Paulo, ele recorria ao poema "Permanência da poesia", de Emílio Moura, para emitir fumaças de rebeldia.
"Antonio Candido foi uma das figuras que concentraram a resistência à ditadura no âmbito universitário. Estava à frente de tudo quanto era protesto, para estabelecer limites, dizer que a ditadura não passaria dali. No dia da morte de Vlado Herzog, ele convocou uma reunião. E todo mundo acorreu. Era uma reunião de protesto", lembra a professora de literatura da USP, Walnice Nogueira Galvão.
"Havia alunos espiões, era uma coisa medonha. Tinha que ficar quieto", Candido narra. "Mas eu dava um jeito: recitava e analisava esse poema de Emílio. Todo mundo entendia na mesma hora". Abrindo aspas:

"Permanência da Poesia

Quando a luz desaparecer de todo,
mergulharei em mim mesmo e te procurarei lá dentro.
A beleza é eterna.
A poesia é eterna.
A liberdade é eterna.
Elas subsistem, apesar de tudo.
É inútil assassinar crianças. É inútil atirar aos cães os que,
de repente, se rebelam e erguem a cabeça olímpica.
A beleza é eterna. A poesia é eterna. A liberdade é eterna.
Podem exilar a poesia: exilada, ainda será mais límpida.
As horas passam, os homens caem,
a poesia fica.
Aproxima-te e escuta.
Há uma voz na noite!
Olha:
É uma luz na noite!"

O militante contumaz ensinava uma lição que poderia constar em "O estudo analítico do poema", talvez num parêntese político: "Onde se falava poesia, o pessoal traduzia como 'democracia', 'povo', etc. Esse poema me foi muito útil como resistência à ditadura".

A mão do crítico, 1944

Casa da Rua Perdões, 131, Aclimação. Antonio Candido prova uma "noite de baile". Na madrugada de 16 de outubro de 1944, sua filha recém-nascida, Ana Luisa Escorel, cobra os mimos do pai, que está dividido entre a máquina de escrever e o berço. Numa carta a Drummond, o crítico folga a gravata:

"Meu caro Carlos Drummond.
Muito obrigado pela remessa das 'Confissões de Minas'. Junto, um artigo que publiquei a respeito na minha secção. Li o livro, em grande parte, numa noite de baile, isto é, choro da minha filha, velha de dezenove dias. Até às 4 da manhã, num canto do quarto, à meia luz. E escrevi as notas num sábado acidentado, saindo da máquina para o berço e vice-versa. Creio que o descosido vem em parte deste jogo
".

O contraponto do berço surgiria em "O pai, a mãe e a filha", o livro de memórias de Ana Luisa Escorel, com fotogramas das vivências familiares e intelectuais na primeira infância. "A atenção da mãe", Gilda de Mello e Souza, "estava sempre pregada no pai, nos livros e nas ideias que apareciam na cabeça dela, sem parar". As batucadas de Antonio Candido inundavam de sons metálicos a sensibilidade das filhas Ana Luisa, Laura e Marina:

"Quando não estava lendo nem fichando, o pai batia à máquina com o ritmo do pensamento servido apenas pelos indicadores. Ao contrário da mãe, ele nunca aprendera a datilografar e só escrevia assim: com os dois dedos apontados para o teclado, tirando com as batidas aquele barulhinho seco e cadenciado, som integrante da vida da casa, melodia necessária garantindo que tudo corria como se esperava que fosse. "

"Clima" sem clima

Criada em 1941, a revista "Clima" escalou uma seleção de intelectuais que marcaria a crítica brasileira. Maldosamente apelidados de "chato-boys" pelo modernista Oswald de Andrade, naquele estabanado jeito de bater antes de estender a mão, eles foram além da literatura, do teatro e das artes plásticas, e acolheram a análise do cinema, arte que ainda não se firmara nos territórios acadêmicos. No grupo central, pontificavam Alfredo Mesquita, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza (à época, "Moraes Rocha"), Lourival Gomes Machado, Paulo Emílio Salles Gomes e Ruy Coelho.
Mário de Andrade foi convidado para assinar o texto de abertura, "A elegia de abril". "Poucas vezes me vi tão indeciso como neste momento, em que uma revista de moços me pede iniciar nela a colaboração dos veteranos", iniciou o autor de "Macunaíma".

O arquivo Drummond, na Fundação Casa de Rui Barbosa, guarda uma carta de Antonio Candido com pedido de colaboração (sem ano determinado, mas assinada em um 25 de agosto). O envelope trouxe também uma angústia e um plano irrealizado:

"O grande óbice, no momento, é a falta de boa colaboração para os próximos números. Toda gente se acostumou a ver em Clima uma revista de grupo, e acha que o tal grupo quer guardá-la para si, fechando-se aos outros. O que é um erro. O que queremos é que a revista seja de todos, e que todos se sintam nela à vontade. Estamos, mesmo, estudando um modo de matá-la como revista pseudo de grupo para ressurgí-la", desabafou.

"Isso eu não me lembro, absolutamente", afirma Antonio Candido, cerca de setenta anos depois, ao ser indagado sobre o desejo de recriar a revista. "Não tenho a menor ideia. Só sei que não conhecia o Drummond - eu era mocinho - e escrevi uma carta, pedindo colaboração. E ele mandou um dos poemas mais importantes, que é a teoria poética dele, a 'Procura da poesia'", relata o crítico, ressaltando que o poeta "era muito generoso com os moços". O poema custou a ser publicado: a "Clima" precisava de dinheiro, não apenas poesia, para ser rodada.

Belo Horizonte, 1947

As brabezas do Estado Novo se esvaíram com a redemocratização do País, a partir da queda de Getúlio Vargas, em 1945. O retorno dos intelectuais às ternuras políticas e boêmias podia ser medido nas madrugadas de Belo Horizonte, no II Congresso Brasileiro de Escritores, em 1947. Pelas ruas, Sérgio Milliet executava a canção marcial francesa Malbrough s'en va-t-en guerre (corrente também, assegurava-se, numa tradução informalíssima de Mário de Andrade); Antonio Candido arriscava um Cururu, do folclore caipira; e Décio de Almeida Prado, o responsável crítico teatral, continuava a seresta belo-horizontina com "uma canção de amigos-do-copo". Décio e Candido formavam uma dupla de chansonniers. Nada estranho para o segundo cantor, acostumado a entoar uma versão francesa de "Fita amarela", de Noel Rosa, traduzida por Milliet:

"Quand je mourrai,
Je ne veux pleurs ni chandelle,
Mais un tout petit rubaii,
Avec le nom de la belle".


Nas mesas das patuscadas, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Arnaldo Pedroso d'Horta e Carlos Lacerda. "Luis Martins, paulista naturalizado, reforçava a animação com imitações impagáveis de artistas e escritores conhecidos (coisa também da especialidade do múltiplo Antonio Candido)", registrou Drummond, no seu diário de 18 de outubro de 1947, transcrito em "O observador no escritório". O impasse nascido no Congresso, após uma ladina moção dos comunistas, seria desatado pelo jornalista Julio Mesquita Filho e pelo casal Lúcia Miguel Pereira-Octávio Tarquínio de Souza, numa das mesas do Pinguim. Com direito a um discurso de Antonio Candido, além dos merecidos chopes.

A partir de 1946, as correntes políticas ficaram mais expostas, e o primeiro congresso não deixara de dar uma contribuição para encurralar a ditadura varguista, cambaleante desde a entrada do Brasil na guerra. Nas reuniões de 1945, "Mário de Andrade quase não participou", destaca o crítico. "Ele estava sempre presente, ouvia tudo, mas não usou a palavra nenhuma vez. Oswald também quase não participou. Mas foi um congresso muito importante, porque foi a primeira vez que os intelectuais tomaram uma posição contra o Estado Novo, tanto assim que os jornais não aceitaram nosso manifesto. Não puderam publicar. Quando foi em fevereiro, houve a famosa entrevista de José Américo de Almeida e aí rompeu a liberdade de imprensa".
Em dois anos, renasceriam as divergências entre os intelectuais. "Houve o seguinte. No Congresso de 1945, realizado em São Paulo, como havia a ditadura, a tendência era fazer frente única. Desde os conservadores até os trotskistas, todo mundo se uniu contra a ditadura, que caiu em 1945. Em 47, cada um já estava na sua posição. E aí, uma série de equívocos. Houve um conflito muito grande entre os comunistas e os não-comunistas. A coisa se extremou. Em certo momento, nós nos retiramos do Congresso... Houve uma série de concessões recíprocas e o congresso se uniu. Quem conta isso bem é o Drummond", relata Antonio Candido, em julho de 2011.

De volta à boêmia de 1947. Suspensa às 4h, com o fechamento do bar, a farra se transferia para os jardins da Praça da Liberdade. Apesar dos temperamentos boêmios, Milliet e Luis Martins não viraram as noites com os amigos, graças a um revezamento de dispneia. "Sérgio Milliet não participou dessas noitadas, devido a um trato que fizera comigo: como ocupávamos, no hotel, o mesmo quarto - e como ambos roncávamos muito alto -, combinamos que ele dormiria à noite e eu durante o dia", narra Luis Martins no autobiográfico "Um bom sujeito".

A primeira viagem de Antonio Candido a Belo Horizonte certamente marcou o espírito do "mineiro de fronteira", pois voltaria a lembrá-la numa recaída nostálgica, em 7 de outubro de 1986, ao escrever para Carlos Drummond de Andrade. "Não é nada não; só vontade de me comunicar com você, porque estou chegando de Belo Horizonte, onde fiquei cinco dias vendo parentes e amigos velhos (...) Lá, muitas pessoas que nada tem a ver com literatura me disseram: li o que o Drummond disse de você. Então lembrei daqueles dias de 47, excelentes apesar das encrencas. Das cantorias e piadas no Pinguim. Dos passeios noturnos. Na Praça da Liberdade olhei o Palácio Arquiepiscopal e lembrei de uma hipótese que apresentei a você, ao Rodrigo, ao Décio numa daquelas madrugadas ambulantes: que uns enormes cachorrões de guarda fossem destinados a práticas terríveis para compensar as frustrações do digno Arcebispo D. Antônio...", insinua.
"Nós imaginávamos cenas com os cachorrões do Arcebispo e dos jardins do Palácio da Liberdade", diz Antonio Candido, depois de ouvir, por telefone, o trecho da carta. Dom Antônio dos Santos Cabral era "o sergipano que empatou por longos anos a igrejinha da Pampulha", como define Humberto Werneck. "Cheguei a conhecer, nos ombros do meu pai em procissões e num congresso eucarístico, essa figura reacionária", relembra o escritor mineiro.

Na carta a Drummond, preservada no arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, Antonio Candido apresentaria outros argumentos para celebrar as antigas farras: "Bons tempos, não apenas porque passaram, mas porque eram os de Milton Campos no governo e, por pior que fossem as perspectivas políticas, Minas não corria o risco de ser governada por um gangster nem de ser tripulada por vigaristas nas assembleias e altos cargos".

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