"Vai me ver com outros olhos
Ou com os olhos dos outros?"
Ela olhou assim:
Meu lugar era ali por detrás desta dor de agora. Era mais que fantasia ou misericórdia: era eu existo. Percorria luminosa esse cotidiano de peso e inabilidades. Tinha a sofisticação dos sonhadores. Eu me via na frente do espelho. Minha imagem sorria para o que melhor em mim pululuva: esperança. Acreditava em santas, em gnomos, em paisagens. O verde me secava as lágrimas; o verde me levava às lágrimas. Uma flor no cabelo, muitas outras arranjadas num vaso, o corpo perfumando a alma. Tocava minhas estrelas imaginadas, inventava canções e escrevia bilhetes; adorava escrevê-los a um nome de homem amado. Catava pedras à beira do rio. Encenava meu casamento, filhos chegando, poesia esparramando-se por sobre o meu silêncio. Toda minha força vinha deste silêncio que me alojava no centro das pessoas misteriosas. O mundo era possível e eu acreditava.
Ela falou assim:
O que vejo é nada. Viver é nada quando olho-me ao espelho. As flores apodrecem, as pessoas morrem e ninguém me ama. Isolo-me dos que sorriem dementes. Incomodo-me com os silenciosos. Brado e brigo e amo o negro do meu vestido que me leva aos bares. Tudo que desenhei é o lugar do meu ex possível. Sou a aparência de uma personagem literária que morreu atropelada. Eu sou mais uma mulher atropelada pela vida. Eu sou essa vaga com a boca pintada frente ao espelho esperando fevereiro.
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