quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Atmosferas

Maria
Me perco.
Para o abrigo do que vejo
Nem sempre em entendimento.
Me sinto.
À luz enigmática de uma presença
Ora fêmea humana, ora fêmea divina.
Me entrego.
Instantes de um trajeto
Que trago na alma marcada
Quando dela: vermelho.
Me sigo.
Movido pelos riscos do drama
Molhado pelo desenho de uma voz.
Me atenho.
A uma atemporalidade criança
A menina que se lança ao fogo
E faz o impossível nascer.
Me valho.
Da escrita infértil em mim
Banhado na beleza rara de uma mulher
Filha da águia, branindo ventania
Que se silencia nas produndezas étereas
Da sua improvável garganta.
Me calo.
Na audição desta senhora
De nenhuma idade.

Na contramão de mim

De alguma maneira a vida me convence. Antes do que me obriga acordar, levantar e sair a favor da minha sobrevivência; algo que sempre fica entre o limiar do sonho e a realidade e eu folheio com os olhos e ocupo com o corpo étereo do grande desejo que tenho.É um transporte do tudo para o nada - um total esvaziamento de mim mesmo para que eu possa me salvar. Folheio por ser o livro que aparece na leitura da minha constante contemplação e eu nunca sei e, talvez, nunca saberei, onde estou ou onde estarei...Contemplo. Sentindo o gosto da contramão. Ímpeto existencial das feridas minhas que não curam e são elas que me definem e mostram-me à saúde do existir. Meu espelho quebrou mas não perdi a razão do "eu sou". Sigo assim: falando de mim e atestando esta vontade de ser reconhecido pelas ásperas leituras dos olhos alheios, fingindo não ligar, mas marcado pelo sentido que ser visto dá ao nosso viver coletivo. Sou eu nisso aqui. Um parágrafo da contramão de mim e eu já me revelei demais.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Saudades de Cachoeira

É como querer se perder em um lugar que só é salvação. Encontro do corpo com a paz, dos olhos com a lindeza da paisagem, da alma com o ancestral; a fé no horizonte correto e um rio caminhando majestosamente para o mar: Cachoeira é o meu inteiro na delicadeza. Calmaria da paixão, se isso for possível, à luz dos olhos mais amados. Um cântico nagô entoado pela saudosa Gaiaku Luisa - várias lições cotidianas e sagradas vindas desta nossa Luisa de Oyá. Luz negra da Irmandade da Boa Morte - fagulhas da certeza de que lá está a minha raiz...
Caras lindas, corpos deliciosos; saberes seculares; arquitetura divina; templos de candomblé; a Pedra da Baleia - minha outra morada -;amigos imprescindíveis; memórias amorosas; pôr-do-sol lindíssimo; mulheres negras secretas; cerveja gelada; muita cachaça;o Pouso da Palavra; a Roça do Ventura; mãe Filhinha de Iemanjá Ogunté; chuva e frio juninos; a profunda saudade e o Paraguaçu - meu mais que amado rio.
Essa cidade não sai de mim.

A esteta do carnaval baiano

Daniela Mercury

De novo a Cidade da Bahia, no carnaval 2009, circuito Barra - Ondina, tremeu e deleitou-se com o show de beleza e música trazida por ela, Daniela Mercury. A filha De Oguian e Oyá brilhou como sempre em sua proposta de levar rigor estético e alegria para seus conterrâneos e visitantes, espelhando o que de melhor uma artista popular pode proporcionar dentro da máxima carnavalesca baiana de : "tira o pé do chão".
Daniela é modelar e ficará em nossa memória como uma deslumbrante hippie-chic festejando os anos setenta e talvez em qualidade, seja a única cantante momesca a representar e a homenagear à altura a inesquecível Carmen Miranda. Além dela, se assim o fizesse, só a insuperável Baby Consuelo, que nunca deveria, e nem deve mais, sair da maior festa pública produzida pelos baianos.
Voltando à Daniela, o seu carnaval foi vigoroso como os ventos fortes de Iansã; contou com as participações marcantes de Vânia Abreu, Margareth Menezes( parceira na música mais significativa de 2009, Oiá por nós), e teve Paula Lima cantando de verdade para todos nós e para vergonha de muitas outras... Daniela, ao lado de Brown, é a esteta do carnaval baiano no setor música eletrizada - pois em outros, os afros e afoxés são imbatíveis no critério estética.
Que delícia ter Dani aqui!!!

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Por um ano de defesa

Dedo de Prosa: Nos passos de Oyá-Bethânia

Cleidiana Ramos

Luciano da Matta I AG A TARDE
Marlon Marcos fez pesquisa sobre a relação entre arte e religiosidade
Marlon Marcos fez pesquisa sobre a relação entre arte e religiosidade

Hoje é dia de festa para santa Bárbara católica, mas também para a guerreira deusa dos ventos e senhora dos raios, patrona dos mercados e portanto da boa sorte, Oiyá-Iansã dos ketu ou Bamburecema dos angolas. É hora de homenagens, mas também informação sobre pesquisas interessantes relacionadas, de alguma forma, a este aspecto da religiosidade baiana. O jornalista Marlon Marcos, religioso de candomblé, fez a sua dissertação de mestrado em Estudos Étnicos e Africanos sobre a relação simbólica entre a arte de Maria Bethânia e o seu orixá Oyá-Iansã. É um belíssimo trabalho de pesquisa unido à poesia e feito por alguém que, além de competente pesquisador é uma figura humana incrível. Para quem deseja conhecer mais detalhes sobre o trabalho ele ainda não está publicado, infelizmente. O jeito é aguardar mais um pouquinho, mas como o próprio Marlon afirma, "Iansã vai vencer mais esta guerra".

Como surgiu a idéia para a elaboração da pesquisa?

Foi quando eu estava fazendo uma disciplina na Facom (Ufba) que discutia os mitos contemporâneos e, principalmente, depois de ler Edgar Morin em seu Mito e Sedução no Cinema, onde ele teoriza sobre o “star sistem”, sobre a fabricação das estrelas e associa os mitos midiáticos aos originais.


O que você destacaria como principal conclusão do trabalho?


Parafraseando Lévi-Strauss: a importância que os mitos têm para nos fazer pensar nós mesmos em nossos ritos cotidianos. E mais ainda: a importância artística de Maria Bethânia que traduz esteticamente, e com muito respeito, alguns elementos sagrados da religião negra que muitos professam aqui no Brasil. Meu trabalho é uma antropologia da beleza e da possibilidade divina presente em qualquer ser humano. E nós, povo-de-santo, sabemos disso.


Além de Bethânia você citaria uma outra artista que estreitou a sua relação artística com o candomblé de forma tão próxima?

Clara Nunes – bem destacadamente-, um pouco dona Clementina, Lia de Itamaracá. E aqui, na Bahia, seguindo os passos de Bethânia e de Clara, Mariene de Castro. Agora, tem uma voz masculina que cria canções-mantras para orixás, inquices e voduns. Seu nome é Tiganá Santana.


Na condução da pesquisa qual foi o seu maior obstáculo?

Fazer uma pesquisa de campo no Terreiro do Gantois, pois candomblé é coisa muito séria e em um lugar como o Gantois a proteção contra olhares estrangeiros e precipitados é bem presente. Entrevistar Bethânia pessoalmente e por fim, diminuir, equilibrar a paixão que sinto pela cantora, pra mim, a maior artista da canção brasileira em tempos atuais.Quanto a Oyá: muito acará, respeito e a devoção de sempre.


Fiel ao arquétipo do orixá que deu o tema do seu trabalho, então, missão vencida.

Sim. Ter realizado esta pesquisa, e no Ceao, sob a direção maior e melhor do meu mestre Cláudio Pereira foi uma realização prazerosa. Inscrevi-me, como sempre quis, no rol da antropologia, minha grande paixão científica. Fiz uma homenagem a Iansã e a Maria Bethânia; Levei o nome de Maria Bethânia para dentro da antropologia, ela, a artista que mais aspectos antropológicos incorpora em seus trabalhos. Ah! Essa Bethânia me deu muita sorte.

P.S.: Originalmente publicado no Portal do A Tarde Online, pelo blog Mundo Afro, editado por uma das mais importantes jornalistas desta terra, Cleidiana Ramos. Neste dia de comemoração e de rememoração não podia faltar aqui !

Esotérico

Gal e Maria
Esta é uma das canções que eu mais amo. Momento alusivo daquilo que dá mais sabor e inspiração à vida. E além de tudo, discorre sobre o mistério do amor quando este acontece no desencontro, no impossível da incompreensão.Tinha que ser do mestre Gil e tinha que ser eternizada nas vozes irmãs de Maria e Gal Costa. Mais um hino do amor que me persegue e eu singro minhas memórias... Em repetidas audições desta canção:

Não adianta nem me abandonar
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar
Até muito mais difíceis que eu pra você
Que eu, que dois, que dez, que dez milhões, todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí
Não adianta nem me abandonar (não adianta não)
Nem ficar tão apaixonada, que nada
Que não sabe nadar
Que morre afogada por mim.
Gilberto Gil




Quem rasga os raios lá fora?

Mesmo que seja cinza, aliás, que bom que é cinza e festeja de força este 21 de fevereiro de 2009: data mágica de uma das minhas conquistas mais importantes até aqui: Oyá- Bethânia: os mitos de um Orixá nos ritos de uma Estrela. Minha dissertação de mestrado que eu espero em Oyá, se transforme em um livro. Hoje faz um ano da defesa - no Palacete das Artes - e coisas muito boas aconteceram de lá pra cá. Meu azul constante navegando o cinza tempestade do poder vermelho de Oyá - que rasga os raios lá fora.
Tudo pode acontecer. Que seja o belo das coisas que sonho para mim e para muitos. Que tenha a leveza da realização e o peso necessário do trabalho. Minha vida que não larga a Poesia e se lança aos caminhos profundos da Antropologia e abraça também o Jornalismo.
Reitero: leveza para combater a pesada nojeira da inveja alheia nos tempos atuais. Leveza para trazer inspiração e ampliar a criatividade. Leveza para olhar o tempo passando na certeza do que é nosso ninguém nos tira. Leveza para marcar nossa vida de auto-importância e para que nossa própria companhia nos seja a mais agradável e a única imprescindível.
Leveza para que o AMOR saiba que eu amo amar ele.
Todo 21 me é pura beleza - nem sempre alegrias - mas símbolo da vida que pulsa e me dá esperança e vontade de prosseguir. Eu sempre sigo à frente.

Filosofia Pura

Maria e Gal

Pelo prazer imenso que eu sinto quando estas duas cantam juntas...

Quanto mais a gente ensina
Mais aprende o que ensinou
Ê á, ê ô
Ê á, ê ô
E o desejo da menina
Quando o seu corpo fulmina
Acende o fogo do amor
Ê á, ê ô
Ê á, ê ô
E a sensação divina
De dominar quem domina
É que cura qualquer dor
Ê á, ê ô
Ê á, ê ô
Pois trocar vida com vida
É somar na dividida
Multiplicando o amor
Pra que o sonho dessa gente
Não seja mais afluente
Do medo em que desaguou
Ê á, ê ô
Ê á, ê ô
Ê á, ê ô
Ê á, ê ô
Roberto Mendes/ Jorge Portugal

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Não chove, mas chove.

De algum lugar que não existe tempo. E da condição sobre-humana. Da solidão dos deuses na superfície das águas.Do medo que a solidão dá. Do lugar sagrado do silêncio. Das imagens energéticas que compõem algumas vidas. Do transporte sem rota da Fé. Do deserto aquático melhorando os instantes. Da tristeza que ergue a beleza. Da distância de uma cultura que esmaga agora a ideia do carnaval. Não chove, mas chove. E eu quero assim.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Por não estarem distraídos

Clarice

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto.No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram.Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Lispector

O moço do saxofone

Lygia Fagundes Telles
Para Paulinha Janaína

Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente.
Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone.Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando?— É o moço do saxofone.Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.— E o quarto dele fica aqui em cima?James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo.
Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.— Aqui em cima.Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo.— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.— Deitou com você?— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho.
Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.— Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja. — Será que ele não tem uma música mais alegre?James encolheu o ombro.— Chifre dói.Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.—- Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone.— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.— E os outros não reclamam?— A gente já se acostumou.
Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu.— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas...Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.— Licença?Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone.
Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida?Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.— Sim senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga.— O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido.
De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.— Não topo isso, pomba.— Isso o quê?Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.— Feito agora.Pela cara vi que era mentira.— Não é preciso, tomo na esquina.A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.— Sim senhor!— Sim senhor o quê? — perguntou James.— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.— Mulher é o diabo...Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo.
Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.— Ora, não precisava se incomodar...Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem?— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra.
Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.— E na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.— Está servido?— Obrigado, não posso fumar.Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?— Eu toco saxofone.Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca.
Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos.
Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.
(Retirado do site http://www.releituras.com/ )

Palacete das Artes Rodin Bahia

Palacete Bernardo Marthins Catharino
Da beleza de um lugar a história transcrita da força econômica de uma família na Salvador do início do século XX. Além da imponente arquitetura que espelha o imaginário artístico francês à la Belle Époque - este antigo casarão, totalmente reformado, abriga agora um dos museus mais significativos do nosso estado - o Palacete das Artes Rodin Bahia - desfiando poesia das imagens que tomam contam da sua espacialidade e também das obras que ele veicula, favorecendo aos seus visitantes encontros com todas as artes. Isso mesmo, a arte é o instrumento primordial que dá sentido ao museu e nele, a dança acontece, a música erudita e popular pulula, o teatro se expressa, filmes e outros áudio-visuais dialogam, e , pinturas, esculturas, gravuras, fotografias dão mais vida bonita às nossas vidas cotidianas. É um lugar de pura encenação...Traz cenas que nos inspiram e nos fazem entender que a arte foi a melhor resposta que o ser humano deu ao ser humano. Visite-nos.
Rua da Graça, 284, Graça. Defronte ao Yázigi. Salvador - Bahia. Fone: 55-71- 3117-6986.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Eu quero Baby !

Nossa Baby
Carnaval, pra mim, em Salvador, só assim: a voz de Baby ecoando juntinha com a dos outros Novos Baianos e revigorando nossos ouvidos num compósito de alegria, dança, boa música, lembranças e educação para que nós aprendamos a fazer um carnaval mais dinâmico e diverso. Baby é patrimônio baiano. Uma cantora modelar, uma narrativa viva de tantas coisas boas que a música dos anos 70 nos deu! Diva como as outras; louca como poucas; mas Baby inteira. Parece que um tom de Diversidade nos atingiu: imagine só, outro trio com três excelentes cantoras da nossa cena: Sandra Simões, Cláudia Cunha e Manuela Rodrigues vão soltar a voz para o bem estar de quem ouve e gosta de canções. Coitada de Cláudia Leitte, vai arrastar multidões, mas também saberá que não pertence à esfera de quem canta... Bela estrela pseudo-dançante, vazia e nula naquilo que mais deveria: cantar. E eu me recuso integralmente.
Eu quero Baby e as cantoras de verdade que iluminam as parcas noites musicais da Bahia. Tudo pode acontecer e tudo pode melhorar: oxalá!

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O castanho dos seus olhos


Pra ocê
Pego na delicadeza dos seus olhos
Seguro à ilusão do amor que sinto.
Viajo no perfume que sua imagem me traz
Pairo sobre a esperança sem lugar
Escrevo cartas, gravo fitas, nego o tempo presente
Afundo barcos, faço orações, grito !
Estou perdido à luz castanha de orgãos
Que não vejo, imagino...
Minha rota de emoção sangra a favor
Do cantinho quente do seu coração
Alarga minha vontade ao encontro
Horizonte refletindo-se castanhamente
Espelho d'água mais nítido
De que quando o assunto é beleza
Advém da sua alma de menino.

Rita Braz

Rita com o Ilê
Ela traz o sentido do sagrado em seu canto. Uma voz ao lírico em diálogo com o popular. Inteira em sua percepção musical voltada a trilhar os caminhos da nossa ancestralidade negra. Timbre dos mais bonitos da cena cultural baiana e impactante ao louvar os SERES da religiosidade jeje-nagô; ao cantar para os orixás ela nos inscreve, pela audição, no Universo religioso que nossos irmãos africanos reinventaram no Brasil e, na Bahia, chamaram de Candomblé.
Fruto dos encontros vocais, de tradições musicais. Uma mulher que representa em sua arte o vigor das Mães Negras nos barracões dos terreiros cantando para os elementos da Natureza. Uma afinação harmoniosa de tonalidade européia somando-se à força mágica de um canto eterno como o de Clementina de Jesus.
Simplesmente isso: Rita Braz é voz de junção. Misto de erudito e popular ofertando beleza aos amantes da musicalidade extraída do seu cantar.
Uma artista que chega e ecoa. E voa como deve voar.

100 anos da mais que notável

Carmen Miranda
Há 100 anos, precisamente em 09 de fevereiro de 1909, nascia na Freguesia de Várzea de Ovelha, distrito da cidade do Porto, em Portugal, a primeira e mais perene grande estrela da canção brasileira: Maria do Carmo Miranda da Cunha, que se tornaria Carmen Miranda, a artista do Brasil mais conhecida no mundo em todos os tempos.
Uma carreira artística em qualquer linguagem só se marca se comunica singularidade: a alma do que especifica e se impregna na memória do povo, o que em alguns casos, emblematicamente o de Carmen Miranda, torna-se para sempre modelar no lugar em que ela surgiu. O lugar da música popular do Brasil tem Carmen como a nossa estrela inesquecível, a que reuniu em si fama, fortuna, talento e popularidade fora e dentro do nosso país. Mesmo morta, a rainha dos balangandãs é a mais viva em seus exemplos e glórias, a mais seguida por muitas outras nesta nação de grandiosas cantoras. Ela, a cantora de expressão única, de comunicação alusiva à construção de certa identidade no centro da nação na qual ela não nasceu.
E talvez, Carmen Miranda seja a mais carioca (e brasileira) de todas as cantoras nascidas e efetivadas aqui, entre nós, em todos os tempos. Musa de muitas gerações e marca maior e primeira da internacionalização do samba como nossa música genuína. Serviu como elemento aglutinador dos nomes musicais que alicerçaram nossa canção nos idos anos 30 e 40 do século XX. Foi a voz de Josué de Barros, o seu “descobridor”, do genial Assis Valente, de Sinval Silva, o mítico autor de Adeus, batucada, de Lamartine Babo, de Braguinha, e do nosso patriarca, o baiano soberano, Dorival Caymmi.
Carmen é a mítica do carisma da invenção em si mesma. Alguém que veio expressar genialidade em gestos, canto, sedução, força cênica, alcance e ser a logomarca artística e política da história musical do Brasil. Se tínhamos Chiquinha Gonzaga compondo há muito lá no Rio, Carmen veio cantar e sambar para se consagrar, através de Hollywood, como a brasileira internacionalmente mais famosa até o tempo presente. Veio pulverizar a sua juventude peculiar embalando versos como: “Samba mocidade/ Sambando se vence nesse mundo”. E ela, sob muitos aspectos, venceu.
Amplamente singular, que como tal, como diferença genial, pode ressoar em nomes como Maria Bethânia, a cantora baiana acusada de linear, que de modo empertigado, tornou-se eterna com os adornos estéticos da sua própria construção; em Clementina de Jesus, tardia grandeza de um canto sem par no Brasil; em Elza Soares, emblema de uma comunicação jazzística e representante do grande samba brasileiro.
Carmen ainda pode ser lindamente homenageada pela singularidade da voz sublime de Gal Costa, quando esta lançou Gal Tropical (1979), revisitando canções lançadas por Carmen como Balancê e A preta do Acarajé; balançar os quadris do baiano via Daniela Mercury atualmente; e pode ainda abastecer esteticamente a iniciante Juliana Ribeiro, outra grande promessa da Bahia para o Brasil.
(Publicado no Opinião do A Tarde em 15 de fevereiro de 2009).

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Pelo que muito seria


Pelo que muito seria na linguagem de um filme: íntimo absoluto da imagem que se destrói para se firmar uma realização. Um tombo da cultura hegemônica. A imagem no meu olho sufocando meu pensamento...Se vai. Não sei o que digo. E quero esconder o que sinto e a imagem me delata terrivelmente. À frente, meu desejo se confunde com minhas memórias e me basta a insolúvel sensação do que nunca foi mas ainda está persistindo-se em mim na cena deste filme. O que foi deveras derrota me chega como vi-tó-ria sem soletrar e sem conjungar a parte feminina do meu destino.
Sou escavado pela força da conclusão do que vejo . Ora poesia, ora sangue violento. Vejo a excitação da memória indo tomar o corpo. Sem muito a dizer: o querer não morre com a cena... E aceno para a esperança de rever e fazer acontecer.
Minha melhor linguagem.

Apesar de

"Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente".
Clarice Lispector

As aparências enganam



" Minha aparência me engana".

Clarice Lispector


Tudo tem seu tempo

Eu sempre me achei chegando atrasado a tudo. Sempre me pareceu que assim que conquistava algo, já não era a mesma coisa, já tinha deixado de ser bom como antes e aí muito me lamentava. Poucas coisas me dão o sentido de completude - talvez seja a arte que mais me faça sentir-me diante de algo completo . Sou eu em minha mente me sentindo atrasado e perdido numa sensação de falta de inteireza e de realização frente à esta coisa chamada TEMPO.
Muitos já disseram: meu tempo é agora, minha vida é hoje. E eu, de fato, concordo: o tempo da gente é nosso e tudo que tem que acontecer, acontece. Às vezes, inexoravelmente. Amadurece e acontece porque é algo que tem que ser - sem fugas nem desastres, tem que acontecer!
Como as coisas que escrevo na areia do meu coração e não se apagam e me vão comigo como sustentação e alicerçam o edificio do meu viver.
Eu sempre deixo o mar em mim: até quando estou no absoluto deserto existencial... Deixo água assim, mobilizando-me a chorar e a me salvar da secura perversa que também perfila a nossa vida.
O tempo é implacável - mas na sinceridade do que escolhemos e brigamos para expressar, a vida acontece nos fazendo realizar a parte que nos cabe no latifúndio do universo...Tudo será muito pequenininho - mas será igualzinho ao nosso tamanho - "nem maior, nem menor; do meu tamanho". E nada será tardio - o que não foi é porque não deveria ter sido e isso é maior que a razão que nos movimenta. Isso é o mistério que alimenta a nossa permanência e nos faz continuar, pois :
Tudo tem seu tempo !

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Nossos momentos

Oyá
Rodando a minha saia
Eu comando os ventos
Quem vem a minha praia vem ver
A força que se espalha de alguns movimentos
Que eu sei desfazer e refazer
Quem pode compartilhar dos meus sentimentos
Na hora que o refletor bater
Momentos de luz e de nós
Momentos de voz e de sonho
Momentos de amor que nos fazem felizes
E às vezes nos fazem chorar
Aqui nesse mesmo lugar
O palco e vocês na platéia
Nós vamos lembrar momentos legais
Um gesto, uma nota, uma idéia,
Momentos intensos
Momentos demais
Momentos imensos
Mentiras reais.
Caetano Veloso
P.S.: Para o que não sai dela: o vento eterno ! 13 de fevereiro de 1965 - raios cortando o céu da Cidade Maravilhosa. A imagem é a do Orixá em sua mais significativa aparição: tempestade.

Carcará

Maria no Opinião
Carcará
Lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião
Carcará
Quando vê roça queimada
Sai voando, cantando,
Carcará
Vai fazer sua caçada
Carcará come inté cobra queimada
Quando chega o tempo da invernada
O sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que home
Carcará
Pega, mata e come
Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho num pode andá
Ele puxa o umbigo inté matá
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que home
Carcará
João do Vale/José Cândido
P.S.: E assim o mito se construiu...

Maria: 44 anos de carreira

Maria

Foi em 13 de fevereiro de 1965, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, no âmago de Copacabana, na noite efervescente carioca, no espetáculo Opinião, ao lado de Zé Ketti e de João do Vale, que uma voz grave e adolescente rasgou pela primeira vez o céu da música popular do Brasil. Ali, nascia para uma nação, uma das mais importantes cantoras da história deste país, uma das mais singulares. Atualmente, de longe e de perto, o mais importante artista em nosso cenário musical. Uma das vozes mais lindas e expressivas em atividade no planeta Terra.
Maria faz hoje ,exatamente, 44 anos de carreira - a história de um aclive, uma subida irradiadora de belezas, com poucas paradas e desgastes; uma subida refletida na força avassaladora da personalidade da grande cantora; uma narrativa de fé, resistência, teimosia, criatividade, singularidade, beleza, sisudez, doçura, drama, escolhas, e mais que tudo, talento e inteligência.
A história de uma mulher que trilhou quatro décadas cantando a sua leitura sobre o país que ela tanto ama. E, aos 62 anos, veicula em sua voz cada vez melhor, a esperança de um povo, a desenvoltura de um povo, que tem em sua cultura popular o alento que forças políticas organizadas não oferecem. Uma mulher artista dialogando que nossa antropologia; desfiando em seus shows, em seus discos, em suas falas, em suas fotos, traços etnográficos do que ainda conhecemos como Brasil; fazendo do seu trabalho um instrumento de educação, de reflexão, de preservação de nossa memória cultural.
Vivíssima e acendendo cores para nos permitir a beleza filtrada e melhorada em seu ímpeto de sempre nos trazer o melhor.
A mestra de Brasileirinho - um impecável tratado artístico sobre coisas que andavam esquecidas nessa terra globalizada e acentuadamente urbana, iniciando uma nova etapa dentro de uma carreira longeva que eterniza Maria e nos faz esperar novas criações desta compositora de almas, que se apossa de composições alheias e as faz suas com sua dramática e alinhada interpretação. Dizem que ela é "over". Deve ser sim, como sua inteira colega, a estadunidense Billie Holiday.
Parabéns, Senhora da Beleza! Muita coisa ainda nos virá de ti! Oyá Ô!

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Billie em Strange Fruit

Billie Holiday
A maior cantora de todos os tempos
Para Felipe Lasserre
Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.
Lewis Allan

Tradução:

"Fruto Estranho - Lewis Allan

As árvores do Sul carregam um fruto estranho,

Sangue nas folhas e sangue na raiz,Corpo negro que balança à brisa do Sul,

Fruto estranho pendendo das árvores de álamo.

Cena pastoral do garboso Sul,

Os olhos inchados e a boca torcida,

Aroma de magnólia doce e fresca,

E o súbito cheiro de carne queimada!

Aqui está um fruto para os corvos bicarem,

Para a chuva juntar, para o vento sugar,

Para o sol apodrecer, para a árvore deixar cair,

Aqui está uma estranha e amarga colheita".

P.S: O mais pungente e artístico manifesto contra o racismo branco no Sul dos Estados Unidos; cantado de modo sobre-humano por ela que reinventou a canção: Billie Holiday.


Agradecimento a Felipe Lasserre

Lasserre

Este jovem historiador, um dos mais competentes alunos que tive até hoje, me prestou uma homenagem que em mim, significa a mais importante das titulações para quem pratica o ofício do ensino... É cabotino, mas eu, em agradecimento, a publico aqui:

Sobre pessoas estrelas
08/02/09
Com certeza todos nós já lemos ou ouvimos falar da diferença entre pessoas cometas e pessoas estrelas: aquelas são as que passam por nossas vidas em algum momento e desaparecem sem deixar rastro; estas, por outro lado, nos marcam de forma que ficam em nossas vidas e nunca mais saem.Esse post é uma homenagem a um querido amigo que é, com certeza, uma estrela na minha vida. Um camarada do bem, que só espalha energia positiva a seu redor. Eu lhe garanto, se você estiver desestimulada(o), cansada(o), se tiver perdido a fé na humanidade e no que há de bom nela, meia horinha de conversa com esse rapaz é batata! Você sairá pronta(o) para enfrentar o mundo de cabeça erguida.Marlon Marcos Vieira Passos, meu amigo, o que é importante você já sabe. Agora é só seguir os seus passos em sua luminosa trajetória de ser humano, mudando algumas coisas para alcançar os fins que eu almejo agora, mas sem mexer na essência, que é o que nos caracteriza, de fato.E agora vou botar a tradução de Strange Fruit, essa música que fez tanta diferença nas nossas vidas e até hoje é um símbolo muito forte pra mim. Me orgulho muito de ter aprendido com você sobre "etnocentrismo e Billie Holiday", além de todo o conteúdo curricular, é claro! Ah, ia esquecendo! Ana Angélica te mandou um grande beijo. Nunca tenha dúvida de que você é um GRANDE PROFESSOR!

Um beijo no coração.

Fonte: www.fotolog.com/felipelasserre

P.S.: Querido, você é prova cabal de que eu cumpri direitinho a minha tarefa. Obrigado e Iemanjá lhe abençoe.


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Sobre 'aqueles dois'

Caio F.

É preciso se salvar sempre. Com uma música, ou um poema; com o brilho do sol refletindo-se na transparência azulada do mar; com o sorriso infinito de uma criança; com sonoridades de atabaque para viajar espiritualmente; com um livro biográfico de alguém que nos fascina; com uma caneta e um papel em branco nos levando a confidenciar bobagens e a fazer irremediáveis auto-delações. Salvar-se numa leitura repetida de um texto que marca aquele encontro inusitado que nós tanto esperamos - que aquece nossa memória de músicas e perfumes, nos faz desenhar, dançar, chorar, calar e se inscrever no absoluto silêncio.
Salvar-se de manhãzinha no ímpeto da nossa oração...Na imagem sagrada da Senhora dos Céus nos consolando e inspirando a continuar...Estar. Inteiro no desejo de sermos o que queremos e sonhar.
Um texto que se ler sem tempo e sem procedimentos historiogáficos. Balizado na esfera da arte que transpõe razões explicativas e faz a vida, ante a leitura, acontecer.
O texto. Salvaguarda do que trago na memória e é futuro. Leio por dentro muito além do silêncio e alcanço para ficar no cerne da coisa que se revela como o 'eu' fora de mim. E preciso encontrar.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Mãe Menininha

Iyá Menininha do Gantois

Ela nasceu em 10 de fevereiro de 1894 e veio a falecer em 13 de agosto de 1986. Um dos maiores símbolos da religiosidade do Candomblé; mãe sagrada de muitos filhos; senhora de muitos feitos - um mito. O povo de santo da Bahia e do Brasil lhe é muito grato, esta mãe de sabedoria invulgar foi uma das representantes sui generis do sacerdócio feminino nas religiões de matriz africana e saltou em qualidade, perfilou seu tempo, abrigou vários brancos oriundos de classes sociais abastadas e não perdeu os ensinamentos que lhe foram legados por duas outras rainhas: sua bisavó, Maria Júlia e sua Tia, Púlcheria de Oxóssi.

Hoje, ela faria 115 anos e sempre é festejada por sua comunidade do Gantois, governada, atualmente, por sua filha caçula mãe Carmen de Oxaguian. Cânticos devem ser entoados para a Oxum mais bonita - imortalizada por Caymmi, adorada por Maria Bethânia e Gal Costa - e sua memória continuará viva como deve ser historicamente em nome da presença dos valores religiosos deixados pelo povo negro de origem africana nesta nação brasileira. Axé, mãe. Motumbá!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

A preta do acarajé

Gal à la Carmen Miranda
Dez horas da noite
Na rua deserta
A preta mercando
Parece um lamento
Ê o abará
Na sua gamela
Tem molho e cheiroso
Pimenta da costa
Tem acarajé
Ô acarajé é cor
Ô la lá io
Vem benzer
Tá quentinho
Todo mundo gosta de acarajé
O trabalho que dá pra fazer que é
Todo mundo gosta de acarajé
Todo mundo gosta de abará
Ninguém quer saber o trabalho que dá
Todo mundo gosta de acarajé
O trabalho que dá pra fazer que é
Todo mundo gosta de acarajé
Todo mundo gosta de abará
Ninguém quer saber o trabalho que dá
Todo mundo gosta de abará
Todo mundo gosta de acarajé
Dez horas da noite
Na rua deserta
Quanto mais distante
Mais triste o lamento
Ê o abará.
Dorival Caymmi
P.S.: Com todo respeito a Carmen, ninguém canta esta canção como Gal Gosta.

100 anos da Pequena Notável

Carmen Miranda

Nascida na Fraguesia de Várzea de Ovelha, distrito do Porto, em Portugal, em 09 de fevereiro de 1909, Carmen Miranda é a mais representativa de uma brasilidade ainda decantada em nosso país. Uma artista imortal. Uma presença de luz na música do nosso Brasil e modelo para a construção de tantas outras carreiras. A nossa Daniela Mercury é recorrente em trazê-la para o carnaval baiano como mote inesgotável de inspiração musical, gestual e de indumentária. Hoje, sua memória é devidamente festejada e ela deve estar às gargalhadas em nome da alegria que sempre nos ofertou. Salve o samba! Vive Carmen Miranda!




domingo, 8 de fevereiro de 2009

À espera do carnaval

Carlinhos Brown

A temperatura ferve neste início de fevereiro no balneário da Cidade da Bahia. Tudo se apronta para festejar nossos sonhos de carnaval: cada vez menos espontâneo, vibrante, criativo, participativo, onírico, eletrizante...Tudo tão igual que chega a ser sem sal - e aquela noção de festa da alegria, nome dos nossos antigos carnavais, parece poeira de repetições nas vozes do Chiclete, Ivete, Durval Lélis, Jamil, Cláudia Leite (vixe Maria!), e a péssima produção em série que nasce daí.
Alento vem do mago do Candeal, a mente sonora e criativa de Carlinhos Brown, trazendo algumas possibilidades de novidade e acerto estético, e contemplação gostosa e movimento ao corpo. A principal peça da nossa eletrização, o belo pai de Franscisco, casado com a Buarque Helena, de fato, com orgulho, é a alma viva do carnaval da Bahia; enquanto os acima citados, só servem para aliviar estresse de paulista, não querendo experimentar as belezas do carnaval pernambucano.
Ao lado de Brown, só a beleza e a composição artística da rainha ( verdadeira!) Daniela Mercury - nesta praia, os dois desfilam criatividade em absoluto a favor disso chamado carnaval de Salvador.
Aqui se tem outras alegrais, é verdade!, o Ilê Aiyê em sua saída sublime; a marca constante do Gandhy misturando fé e alegria; o Expresso 2222 do Gil, quando pinta sem Claudia Leite e companhia; a Timbalada com Denny; o Harmonia e a doçura erótica de Xandy; o Cortejo afro; os blocos de samba; Oludum; a reiterada maestria de Gerônimo; Mariene de Castro e Márcia Short cantando e o melhor: a Mudança do Garcia.
Estou louco que carnaval chegue e passe e me traga vindouras possibilidades de conhecer os carnavais pernambucano e carioca. Se eu ficar aqui, 2009, quero ver o Malê, ouvir Lazzo e se Deus muito ajudar, ouvir Baby, Pepeu, Paulinho Boca, Moraes, tendo como convidados Caetano, Gil e Davi Moraes... Se é pra repetir que me seja com qualidade!!!
Ave Carlinhos Brown!

sábado, 7 de fevereiro de 2009

E o mundo não se acabou

Assis Valente ( genial baiano)
Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disto a minha gente lá em casa começou a rezar
Até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disto nesta noite lá no morro não se fez batucada
Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei a boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou
Peguei um gajo com quem não me dava
E perdoei a sua ingratidão
E festejando o acontecimento
Gastei com ele mais de quinhentão
Agora soube que o gajo anda
Dizendo coisa que não se passou
Ih, vai ter barulho e vai ter confusão
Porque o mundo não se acabou.
Assis Valente
P.S.: Um dos melhores compositores de Carmen Miranda, que arrasa cantando esta canção deliciosa e eterna.

Carmen Miranda


Uma carreira artística em qualquer linguagem expressiva só se marca se comunica singularidade: a alma do que especifica e se impregna na memória de um povo, o que em alguns casos, emblematicamente o de Carmen Miranda, torna-se para sempre modelar no lugar em que ela surgiu. O lugar da música popular do Brasil tem Carmen Miranda como a nossa estrela mais perene, a que já morta, é a mais viva em seus exemplos e glórias, a mais seguida por muitas outras, neste país de grandes cantoras. A cantora de uma expressão única, de comunicação alusiva à construção de uma certa identidade no centro da nação na qual ela não nasceu.
E talvez, Carmen seja a mais carioca( e brasileira) de todas as cantoras nascidas e efetivadas aqui, entre nós, em todos os tempos. Musa de muitas gerações e marca maior e primeira da internacionalização do Samba como música genuína brasileira. Elemento aglutinador dos nomes musicais que alicerçaram nossa canção nos idos anos 30 e 40 do século XX. A voz de Josué de Barros, o seu "descobridor", do genial Assis Valente, de Sinval Silva, de Lamartine Babo, e nosso patriarca, o baiano soberano, Dorival Caymmi.
Ela é uma mítica do carisma e da invenção em si mesma. Alguém que veio espressar genialidade em gestos, voz, sedução, alcance e ser a logamarca artística e política da história musical do Brasil. Se tínhamos Chiquinha Gonzaga compondo há muito lá no Rio, Carmen veio cantar e sambar para se consagrar como a brasileira mais conhecida no mundo até o tempo presente. Veio pulverizar a sua juventude peculiar embalando versos como : " Samba mocidade/ Sambando se goza nesse mundo". E ela, sob muitos aspectos, venceu.
Amplamente singular, que como tal, como diferença genial, pode ressoar em nomes como Maria Bethânia, eterna em sua própria construção; em Clementina de Jesus, tardia grandeza de um canto sem par no Brasil; em Elza Soares, emblemas de uma comunicação jazzística e representante do grande samba brasileiro.
Carmen Miranda faz 100 anos como se nunca tivesse morrido.

Adeus batucada

Carmen Miranda ( 100 anos!)
Adeus, adeus
Meu pandeiro de bamba
Tamborim de samba
Já é de madrugada
Vou-me embora chorando com meu coração sorrindo
E vou deixar todo mundo
Valorizando a batucada
Em criança com o samba eu vivia sonhando
Acordava, estava tristonha chorando
Jóia que se perde no mar só se encontra no fundo
Samba mocidade
Sambando se goza nesse mundo
E do meu grande amor sempre me despedi sambando
Mas da batucada agora eu despeço chorando
E trago no peito esta lágrima sentida
Adeus batucada, adeus batucada
Querida
Sinval Silva

Na batucada da vida

Carmen Miranda ( 100 anos!)
No dia em que eu apareci no mundo
Juntou uma porção de vagabundo da orgia
De noite teve samba e batucada
Que acabou de madrugada em grossa pancadaria
Depois do meu batismo de fumaça
Mamei um litro e meio de cachaça - bem puxados
E fui adormecer como um despacho
Deitadinha no capacho na porta dos enjeitados
Cresci olhando a vida sem malícia
Quando um cabo de polícia despertou meu coração
E como eu fui pra ele muito boa
Me soltou na rua à toa, desprezada como um cão
E hoje que eu sou mesmo da virada
E que eu não tenho nada, nada
Que por Deus fui esquecida
Irei cada vez mais me esmolambado
Seguirei sempre cantando
Na Batucada da vida
Ari Barroso/ Luiz Peixoto

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Dona Quelé

Clementina de Jesus

Esta grande dama da canção brasileira estaria fazendo 107 anos no dia 07 fevereiro(1902-1987). Foi descoberta tarde, por Hermínio Bello de Carvalho, e ainda assim, se marcou definitivamente na história da nossa música popular. Grave canto de releituras representativas do universo cultural da negritude no Brasil. Um canto de beleza pedagógica. Rainha Quelé de todos nós, morreu aos 85 anos e deixou uma obra pequena perante à sua grandeza artística e à sua modelar presença simbolizando o canto do nosso povo oriundo da África.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Mão ao chão

Maria

A beleza sem medida marcando a saída do seu lugar melhor de comunicação:o palco. Toca o chão em elegância e agradece à Luz e ao público e volta para o cotidiano e planos de retornar na luminescência do corpo de mulher guiado por uma voz. A voz de 62 anos. Cada vez mais límpida e sobre-humana.

Dedo ao céu

Maria
Pela viva poesia que se apresenta do corpo desta mulher; os traços de uma cultura que ela leva aonde vai...Síntese deste verde meio Oxóssi, meio São Jorge, meio Rio de Janeiro, meio Bahia;inconfundivelmente Brasil. Traços sincréticos de uma expressa cênica e musicalmente. Uma dança inventada dentro da força criativa de alguém que se chama Maria Bethânia.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

As três meninas do Brasil

Jussara Silveira, Rita Ribeiro e Teresa Cristina

Em alguns setores da reunião humana neste país a beleza viceja, se prolonga e nos atinge. O selo Quitanda, centro irradiador da inventividade da cantora Maria Bethânia, associado à gravadora carioca Biscoito Fino, lançou o novíssimo projeto Três meninas do Brasil, que nos formatos de CD e DVD, traz as brasileiras Jussara Silveira, Rita Ribeiro e Teresa Cristina, desfiando agradabilíssimo repertório que já desponta como uma das mais sólidas e bem-vindas novidades musicais de nossa indústria fonográfica em 2009.

Imagine-se cada uma destas cantoras, de modo independente, conduzindo suas carreiras à luz de criatividade, trabalho, bom gosto, afinação, bom senso e coerência artística, sagrando-se entre as mais representativas do cancioneiro brasileiro na atualidade e, depois, juntando-se magistralmente para fazer a melhor música popular que um lugar pode ter.

Pois é assim: interpretações personalíssimas, suingadas e dirigidas a entreter a alma e o corpo de quem as ouvem, perfilam este projeto nascido, primeiro, do interesse de Rita Ribeiro e Teresa Cristina de comporem juntas; daí surgiu a ideia de um show com três, e o nome Jussara Silveira se apresentou. O projeto ganhou corpo de texto com as mãos de Rita Ribeiro, que também resolveu convidar seu fiel escudeiro ultimamente, o jornalista baiano Jean Wyllys, diretor artístico da empreitada que chega para iluminar de música esses dias dificílimos da economia mundial.

O que pensar e sentir de um show-disco que junta Dorival Caymmi, Tom Zé, Caetano Veloso, Chico Buarque, Zeca Baleiro, Sérgio Sampaio e Carlinhos Brown. Que canta Márcio Greyck em sua canção de amor desvelado, Impossível Acreditar que perdi você e segue homenageando os baianos dos anos 70, o grupo Ticoãns, célebres em louvar santos, orixás e caboclos nos LP’s que gravavam e nos shows que faziam? Tudo isso nas vozes das três meninas?

É um trabalho de reparação estética no universo da música popular brasileira. Uma festa para a noção de satisfação e prazer que tanto precisamos para prosseguirmos menos doídos. A baiana nascida em Minas Gerais, Jussara Silveira, empresta a sofisticação do seu canto e viaja por seu repertório peculiar para depois se aliar a outros temas da canção nacional. A maranhense Rita Ribeiro, detentora de belíssima voz, segue mostrando suas pesquisas culturais e revisita também seu próprio repertório. A carioca premiadíssima, musa de Paulinho da Viola, Teresa Cristina canta as delícias do samba do Rio de Janeiro, e segue com sua voz de alegria e choro festejando canções dos quatro cantos do Brasil.

Note-se que é um trabalho de dimensão nacional, que busca abarcar com qualidade e com o filtro estético de cada cantora envolvida, as feições da musicalidade do nosso povo e que por ser feito por uma baiana, uma maranhense e uma carioca reveste-se de negritude, corroborando a máxima de que no cenário da música no mundo, a negrada é imbatível.

(Publicado no Opinião do A Tarde em 31/01/2009).

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Na barra da sua saia

Iyá Ogunté
(Terceira homenagem de 2009)
Me seguro e não largo
Me vou sereno louvando-lhe em iorubá
Dançando a felicidade sobre as águas
Movimentando barcos ao seu alcance
Tocando o atabaque do meu bem querer
Lotado de rosas em rosa e champagne
Banhado no azul dos sonhos que me aproximam
Da sua força feerica de amor de Mãe.
Iyabá dos meus horizontes
Paz nas horas terríveis
Mulher da minha continuação
Rainha do reino melhor
Água da vida sobre mim
Sal da minha liberdade
Carinho mais que preciso
Abrigo e realização.
Senhora dos rios, Mãe brasileira dos mares.
Eru Iyá!


domingo, 1 de fevereiro de 2009

Eu e água ( na voz de Maria)

Segunda homenagem 2009
Para Yemoja

A água arrepiada pelo vento
A água e seu cochicho
A água e seu rugido
A água e seu silência

A água me contou muitos segredos
Guardou os meus segredos
Refez os meus desenhos
Trouxe e levou meus medos

A grande mãe me viu num quarto cheio d'água
Num enorme quarto lindo e cheio d'água
E eu nunca me afogava

O mar total e eu dentro do eterno ventre
E voz de meu pai, voz de muitas águas
Depois o rio passa
Eu e água, eu e água
Eu

Cachoeira, lago, onda, gota
Chuva miúda, fonte, neve, mar
A vida que me é dada
Eu e água

A água
Lava as mazelas do mundo
E lava a minha alma
Caetano Veloso