sábado, 6 de outubro de 2012

A reclusão de Rogério Duarte, mentor do tropicalismo

 

Figura fundamental na intelectualidade brasileira dos anos 1960 e 70, o designer, hoje leva vida religiosa em Salvador e terá sua trajetória documentário

 

Rodrigo Sombra ( O Globo - Cultura em 15/09/2012)

 

 

SALVADOR - ‘Quando eu vejo aquela Nina da novela xingando Carminha: “Sua vaca, sua vaca!”, eu penso: Meus Deus, que mulher imbecil, quanta ignorância... — diz o designer Rogério Duarte, devoto Hare Krishna, em protesto contra a heresia ao santo nome da vaca.

Rogério é caso singular na arte brasileira de quem atravessou marxismo, Cinema Novo, Tropicália e realizou-se na filosofia hinduísta. Celebrado pelas capas de LPs que fez para Gil, Gal e Caetano, foi mentor intelectual do tropicalismo nas artes gráficas e fora delas. Zé Celso Martinez Corrêa, Hélio Oiticica e Torquato Neto são tributários de suas ideias. O homem que Glauber Rocha disse estar “por trás de todos nós”, contudo, há décadas acostumou-se ao anonimato. Convertido ao movimento Hare Krishna, recolheu-se a uma vida religiosa e passou a se ocupar da discreta missão de traduzir sânscrito.
Em fase de pré-produção, um documentário sobre sua trajetória a ser rodado nos próximos meses pelo cineasta baiano Walter Lima promete devolvê-lo à superfície.
 — A ideia (do documentário) é mostrar o Rogério pensador — explica Walter. — Além de um designer maravilhoso, ele é uma figura fundamental na intelectualidade brasileira dos anos 1960 e 70, como foi Oswald (de Andrade) na década de 1920.
Há anos Rogério vive sozinho em Salvador e diz raramente encontrar os amigos tropicalistas. Práticas de meditação, trigonometria e xadrez on-line hoje lhe ocupam os dias. Mais magro do que nas fotografias conhecidas da juventude, há um ano superou um câncer nas cordas vocais e aparenta levar uma vida austera. Na sala de seu apartamento quase nada sugere a ideia de decoração. Imagens não ornam paredes, caixas empilham-se umas sobre as outras e uma lousa com o alfabeto sânscrito ladeia uma pilha caótica de peças de xadrez. Em um canto, cartazes carcomidos dos filmes “Meteorango Kid” e “Idade da Terra” dão testemunho de seu ofício como designer.
— Recebo (convites), mas recuso. Não tô mais fazendo — diz Rogério, sobre projetos como artista gráfico. — Minha obra é histórica, pertence a um momento da história do design mundial, não é para ser pasteurizada.
Afastado do design, foi professor universitário e encurtou a distância entre o leitor brasileiro e a literatura sânscrita. É dele a primeira versão direta para o português do épico hinduísta “Bhagavad Gita”, publicado nos anos 1990 pela editora Companhia das Letras. Sem grande repercussão, lançou em novembro passado sua tradução do “Gitagovinda”, poema medieval de Jayadeva Goswami que narra os passatempos sexuais de Krishna às margens do Rio Jamuna. Conhecido por sua visão erotizada da transcendência, o texto pertence ao cânone das letras indianas.
— Ali tem coisas que só os grandes poetas do Ocidente alcançaram, como (T.S.) Eliot, Goethe… — diz Rogério, admirador exaltado da comunhão entre o sexo e o divino que há em “Gitagovinda”. — É absolutamente necessário que nossa mente suja ocidental seja lavada pelas águas eróticas do Rio Jamuna, para a gente entender que sexo é a coisa mais nobre e sublime.
Karma e tortura
Chancelada pelo professor Howard Resnick, PhD em sânscrito pela Universidade de Harvard, a edição brasileira de “Gitagovinda” saiu com a módica tiragem de mil exemplares. Rogério revisou, editou, elaborou a capa e bancou-a do próprio bolso.
Grande parte da obra pela qual Rogério é celebrado se concentra na década de 1960. A pujança criativa desse período seria abalada na Páscoa de 1968, quando ele e seu irmão Ronaldo participaram de um protesto no Centro do Rio e foram presos e torturados por militares. O nome Rogério Duarte Guimarães pode ser encontrado em relatórios dos órgãos de repressão recém-abertos no Arquivo Nacional. Em ficha do SNI (Sistema Nacional de Informações) emitida cinco dias após sua soltura da prisão, ele ocupa menos de meia página e é descrito sucintamente como “elemento de esquerda, assim como o irmão Ronaldo, ligado às atividades de artes plásticas”. Um carimbo estampado ao final da ficha informa que anexos foram destruídos. À época, a notícia da prisão dos irmãos Duarte — uma das primeiras denúncias contra a tortura cometida pelo exército — provocou sismos na opinião púbica pré-AI-5.
Quarenta e quatro anos depois, a posição de Rogério sobre o episódio da tortura é matizada. Como anistiado, reclama uma reparação mais justa e diz guardar “um pouco de mágoa”. Espiritualmente, a interpretação é outra.
— O trauma, só a filosofia da Índia explica: a teoria do karma. De algum modo aquilo teria que acontecer. É a teoria de Jung, da sincronicidade. Não existe acaso puro, as coisas têm um sentido. Porque tudo poderia ser evitado, eu poderia simplesmente não ter ido ali naquele dia. Algo em mim me levou para as câmaras de tortura — diz, sem qualquer tom de ironia ou amargura. — Antes, era para mim tão inimaginável a ideia de ser torturado que, por uma estranha razão, talvez eu pensasse: “É a única coisa que não experimentei”.
Rogério conservou ao longo da vida uma saudável antipatia a receituários. Conhecedor de arte burguesa na fauna marxista do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, hinduísta entre universitários, intelectual de esquerda entre hinduístas, sua figura jamais comportou descrições fáceis. Não por acaso, ele costuma reivindicar para si um lugar de marginal na arte brasileira. Traduzir sânscrito seria apenas a etapa mais recente de uma obra historicamente ungida pela dissonância. O aspecto iconoclasta de suas ideias teve impacto fundo na formação de tropicalistas mais novos, como Caetano e Gil.
— Conversávamos muito. E sobre mil assuntos. Sobretudo, ele falava. Eu adorava ouvir e aprender — conta Caetano, sobre a convivência no período tropicalista.
Rogério é padrinho do primeiro filho do compositor, Moreno, e um sentido mútuo de admiração ainda hoje acompanha a amizade entre eles.
— Sua dedicação ao estudo e à tradução desses textos (em sânscrito) deveria ser acompanhada com grande seriedade crítica — diz Caetano. — Ainda assim, o conjunto de suas atividades não pode prescindir da mensagem perene de atirar-se à margem da margem. Essa atitude existencial dá cor especial a cada trabalho, a cada gesto de Rogério.
Para os Hare Krishnas, Rogério Duarte é Raghunatha das. A inflexão ao hinduísmo data do fim dos anos 1970 e coincide com sua fase de maior ostracismo. Os esforços mais recentes em trazê-lo à baila vêm do exterior e atualizam o poder de suas ideias. Em 2009, ele foi homenageado com uma retrospectiva individual na Narrow Gallery, em Melbourne, Austrália. Um ano depois, a revista japonesa de design “Idea” dedicou 24 páginas à sua obra.
Apesar de celebrações esporádicas, Rogério crê que seu legado ainda exige revisão. Para ele, seus cartazes e capas de discos teriam transcendido sua função original de uso e ganhado autonomia como arte histórica.
— Velázquez pode ter feito retratos de encomenda, assim como eu fiz capas, mas depois eles passaram a valer milhões de dólares. Andy Warhol fez capas de disco e cartazes igual a mim. Mas Andy Warhol vale milhões de dólares, e eu quero que Rogério Duarte valha pelo menos milhões de reais — diz, com um sorriso jocoso por baixo do bigode. — Quando eu digo milhões, milhões não é nada. É o valor real que eu quero. É a devida consideração pela criatividade, pela inteligência que ordenou aquilo, pela capacidade de síntese e também pela novidade.
Entre soberbo e abnegado
Dado a autoelogios, Rogério deixa a forte impressão de ser um homem cindido. Ao longo da conversa, ora compraz a si mesmo com sua figura de jovem prodígio, e até se permite ataques de genialidade (“Eu já nasci erudito”), ora palavras em sânscrito se insinuam em sua fala e reavivam os temas religiosos que hoje ordenam seu mundo.
Apelidado de Caos na juventude, aos 73 anos Rogério parece oscilar entre o artista soberbo e o discípulo abnegado de Krishna. E é aí que a tarde cai, e ele mira o relógio. Pede licença para rezar seu último mantra do dia. Fecha os olhos e balbucia orações por entre os fios da barba grisalha. Minutos depois, reabre-os e diz:
— Essas coisas que eu te falei agora, que sou um grande artista, que devo ser reconhecido, justiçado: tudo isso é Maia (ilusão). Fiz essa meditação agora para me devolver a mim mesmo.
Mais adiante, pede que interrompamos a entrevista. A fragilidade das cordas vocais ameaça a conversa. Despede-se com gentileza, fecha a porta e volta a recolher-se. No encontro anterior, havia dito que, a esta altura da vida, a poesia era a única coisa que lhe restava. Recentemente, Rogério voltou a escrevê-la. Em sua página do Facebook, publicou uma quadra:
“Agora entendo o mistério/ Desse nó que não desata/ Eu preciso ser Rogério/ Pra também ser Raghunatha.”

P.S. : essa entrevista é um poema intenso juntando duas grandezas: a do repórter e a do mestre Duarte: é de chorar. E de alegria!

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