Um dia, em uma entrevista, ela me disse: “obrigada por gostar do
meu trabalho, um simples ofício de cantora popular. E que você se expresse com
sensibilidade e inteligência, Deus o abençoe sempre”. Havia ali a presença toda
sã de uma das maiores artistas que este país viu nascer e permanecer, falando
com alguém que engatinhava, aos 33 anos, buscando a expressão como acadêmico
entre a história, o jornalismo e a antropologia, usando como tema de pesquisa o
talento fulgurante da cantora em associação às narrativas do orixá Oyá-Iansã.
A partir da pesquisa começada na Faculdade de Comunicação da
UFBA, e ainda continuada no Programa de Pós Graduação em Estudos Étnicos e
Africanos, no CEAO, passei a centralizar em mim os exemplos estéticos e
intelectuais dados por ela. Tornei-a meu controle de qualidade para as coisas
que me atrevo a fazer.
Maria Bethânia Vianna Telles Velloso faz nestes 13 de fevereiro
50 anos de oficializada e luminosa trajetória artística no principal cenário
lítero-musical brasileiro. Uma cantora popular nascida na Bahia que ensina ao
Brasil a ser brasileiro, que brada ao som da inconfundível voz possibilidades
estéticas, saídas políticas, memórias, trajetórias religiosas, convivências
étnicas, melhoras sociais. Ou seja, uma voz que escreve belezas e educa a favor
de uma plateia nacional que seu talento merece conhecer.
São 50 anos desfiando os lugares mais límpidos da poesia, usando
o som e a palavra para expressar a sua dilacerante inteligência que colore o
seu comportamento e define a sua arte.
Inteligência e sensibilidade que alicerçam sua caminhada embasada em
autodidatismos e a levam a fazer uma espécie de etnoantropologia deste país,
que custa a se transformar em um lugar mais humano e igualitário no sentido das
questões econômicas.
Bethânia é a beleza que esmigalha opiniões, pois transpõe as
favoráveis e as desfavoráveis – a sua força inventiva somada à autopreservação
e à vontade missionária por expressão, a conduziram ao posto de artista
feminina mais importante do cancioneiro no Brasil. O amadurecimento do seu
canto, aos 68 anos de idade, confere a nós brasileiros o privilégio de termos
viva uma das maiores cantoras do mundo em atividade. A sua recorrência estética
embeleza o mundo com as coisas mais simples e mais necessárias que temos no
nosso cotidiano, e que podem nos traduzir identitariamente.
Inexplicavelmente, ela é poesia transfigurada em fêmea, mulher,
cantora, brado, projeto, elucidação, silêncio... A artista que gera congressos,
que atrai Omara Portuondo, que inspira poetas, desequilibra intelectuais, e
melhor, singularmente canta o que se pede pra cantar.
Nota nítida é o estar desta menina que, dos seus quintais,
elabora sonhos e paisagens e nos convida a participar. Uma mulher aquática
destemida, dona dos ares, brincante, entreposto da emoção que dialoga com a
razão de quem sabe ser gente e águia, esta sereia negra da voz matricial da
Purificação.
A diva que diz: “ Chegar para agradecer e louvar o ventre que me
gerou, o orixá que me tomou, a mão de água e ouro de Oxum que me consagrou”; e
sai pelos palcos, clariceanamente, desafiando: “ tropece aonde eu tropecei, e
levante-se assim como eu fiz”.
É esta a rosa do deserto de Cecília, a destemida Iara do amado
Caetano, a principal discípula de Fauzi, a filha mais exemplar da minha
majestade Oyá, o manancial da diversa beleza que trago para dentro da
antropologia que faço.
Musa e mestra numa carreira longeva que está sempre
recomeçando.
Marlon Marcos é poeta e pesquisador aficionado da obra de Maria
Bethânia.
2 comentários:
Como sempre - e em integridade na obra - este texto anima a gente!
Obrigado, Marlon.
Bethânia sabe!
Prof. Marlon... o cara dos belos textos! (Eu falei isso pra ele, pessoalmente, quando do II Congresso Sobre o Canto e a Arte de Maria Bethânia, em Salvador).
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