quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Água Viva


A pintora-missivista, Água Viva

“Olha para mim e me ama.
Não: tu olhas para ti e te amas.
É o que está certo.”
( Clarice Lispector, Água Viva).

O livro Água Viva foi publicado em 1973. Um texto que narra a história de uma pintora, que mergulhada em lembranças da sua relação amorosa desfeita, resolve inusitadamente escrever para o ex-amante e constrói uma carta-despedida que se tornou a mais bonita missiva da literatura brasileira até então.
O nome da personagem não aparece na história, que narrada em primeira pessoa vai desenhar dentro de sofisticada linguagem, um quadro de dilacerante despedida e revelar os caminhos criativos de uma escrita erguida da esmagadora solidão. Um texto muito distante de narrar linearmente uma história, talvez seja mesmo uma narrativa sem história que envolve o leitor em uma teia de sentimentos e sensações provocadas pelas imagens pintadas por palavras, imagens que iluminam a percepção e que conduzem o leitor a re-criar através da imaginação novas possibilidades de histórias dentro do livro agora analisado.
É uma discursiva assumidamente feminina, na qual os hábitos e costumes da narradora reforçam a idéia da sua condição sexual e reitera os construtos simbólicos que representam a mulher no âmbito da cultura ocidental. Um livro que paradigmaticamente se insurge contra os escritos clariceanos anteriores, e se apresenta como um grande poema, ou melhor, como exemplo de uma belíssima prosa-poética em digressões sobre as sensações e as percepções do indivíduo feminino:
“Ouve-me então com teu corpo inteiro.
Quando vieres a me ler perguntarás por
que não me restrinjo à pintura e às minhas
exposições, já que escrevo tosco e sem
ordem. É que agora sinto necessidade de
palavras – e é novo para mim o que
escrevo porque minha verdadeira palavra
foi até agora intocada. A palavra é
a minha quarta dimensão”(p.10).

É mais uma história de amor clariceana, expressando pelas entrelinhas, ou mesmo, pela liberdade interpretativa do leitor, um universo de sentimentos antagônicos que agonizam e revigoram a pintora-missivista, dedicada a escrever como se estivesse a falar, ou até mesmo a pintar, contra o silêncio exercido por ela, talvez, durante a existência de sua relação amorosa. Escrever/falar para negar os erros cometidos no passado e se sentir mais inteira diante de si, recuperando assim a integridade da sua identidade perante os escombros gerados sócio-existencialmente por uma separação.
Escrever para passar o tempo e vencer a saudade, que persiste diante da solidão. E deste ato de escritura experenciar o “enfeitiçamento” que acomete a narradora de uma “verborréia” imagética e a faz construir outra realidade, que se traduz assim:
“Não quero ter a terrível limitação de quem
vive apenas do que é passível de se fazer
sentido .Eu não: quero uma verdade
inventada.”(p.20).

Entre as três personagens discutidas até aqui, há a necessidade de consolidação identitária. As três são mulheres da classe média, instruídas, urbanas, que vivenciam suas experiências femininas em um nível razoável de consciência, e se questionam sobre a realidade, sobre a existência e as motivações pessoais (e coletivas) que podem conferir sentido à vida humana.
Permeando as histórias de GH, de Lóri e da Pintora-missivista, estão questionamentos recorrentes ao universo feminino: a descoberta de si, a entrega amorosa, a maternidade, o encontro com o outro, o desencontro e a solidão. Traços de uma poética-construção da história da mulher em suas variantes sócio-culturais, mas convergentes quando explicam o processo de “feminilização” da fêmea humana.
E como apetrecho poético, a narradora de Água Viva encerra a sua carta-poema lotada de definições identitárias dirigindo-se ao outro, consciente de si:

“E eis que depois de uma tarde de ‘quem
sou eu’ e de acordar à uma hora da
madrugada ainda em desespero – eis que
às três horas da madrugada acordei e me
encontrei. Fui ao encontro de mim.
Calma, alegre, plenitude sem
Fulminação. Simplesmente eu sou eu.
E você é você. É vasto, vai durar.
(...)
O que te escrevo continua e estou
enfeitiçada.”(p.87).

Então o amor se desconstrói, mas prossegue em encantamento.
P.S.: Hoje ela faz 88 anos. Bravíssima!

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