quinta-feira, 22 de março de 2012

Disco de Gal Costa aprofunda ciclo poético de Caetano Veloso




Leitura obrigatória:

Claudio Leal ( Terra Magazine)

"Nascemos escuro."
(Drummond, "O medo")
Cantar era um destino quando Maria da Graça implorou ao colunista social Sylvio Lamenha para conhecer João Gilberto, no início da década de 60, em Salvador. "Me leva. É o meu ídolo!", exigiu Gracinha - ou Gal, apelido de fornada baiana. "Já ouvi falar de você. Tem um violão?", indagou o cantor, depois da apresentação feita por Lamenha, ave corpulenta e extraordinário imitador dos erres de Dalva de Oliveira. Liberada pela mãe, a menina da Barra Avenida correu para o encontro, instrumento à mão, e gramou a noite a acompanhá-lo. "Gracinha, você é a maior cantora do Brasil!". O mestre parecia ver no ifá.

Esse destino artístico se cumpriria nas quatro décadas seguintes. Mesmo nos períodos de silêncio. Ou de acomodamentos. Na história da canção brasileira, Gal Costa se afirmou tão reluzente que suas ausências fonográficas instilam um sentimento aflitivo, uma angústia com seus intervalos criativos. O longo recato de seis anos, iniciado após o disco "Hoje" (2005), é agora desfeito com "Recanto" (Universal Music). Reinvenção não apenas dela, mas de Caetano Veloso, que aprofunda um ciclo poético despontado no LP "Domingo" (1967) e construído permanentemente sem definições formais, nem unidade, pois a inquietação já se converteu em um programa estético.

Em 1992, na crônica "O poeta do encontro", o escritor Otto Lara Resende expôs a impossibilidade de reduzir Caetano ao nicho da música, e conclui por considerá-lo "legítimo poeta do Brasil": "Indiferente à palha seca da controvérsia, a arte segue o seu caminho. A vertente é uma só e é nela que se dá o encontro das águas. Pouco importam as fontes de onde procedem. Purificadoras e purificadas, seu caráter lustral as universaliza. Caetano Veloso, por exemplo, quem ousaria classificá-lo?".

No álbum "Recanto", a influência da poesia de João Cabral de Melo Neto, reiterada pelo compositor desde a Tropicália, na aspereza e no rijo ofício dos versos ("sem perfumar sua flor,/ sem poetizar seu poema", como ensinava o pernambucano), conflui para o legado de Carlos Drummond de Andrade. O conjunto de letras consolida as subversões antiestilísticas de Caetano - soturno, impuro, atômico - e se vincula a nossa tradição poética como raras vezes acontece, com essa presteza, na música brasileira. E registre-se: em boa parte das revoluções anteriores, lá estava o mesmo trovador.

"Madre Deus", composta originalmente para o balé Onqotô, do Grupo Corpo, é de aberta intertextualidade, por dialogar com o poema "Memória", do Drummond de "Claro enigma": "E as coisas findas/ Muito mais que lindas/ Essas ficarão/ Dizia/ A poesia/ E agora nada/ Não mais nada, não". Esse complemento cético à poesia original esbarra na promessa de "uma certa felicidade" sustentada pela música popular, como definiu Drummond numa conversa com o compositor, no final dos anos 70. Ironicamente, a justificativa para a descrença talvez esteja em outro comentário do poeta de Itabira, desta vez sobre a tranquilidade de Caymmi: "E nós, Caetano, que só pensamos em coisas ruins?".

"Recanto escuro" resulta quase num desespero drummondiano de definir-se enquanto se confronta o mundo. Caetano funde a voz poética aos lampejos biográficos de Gal Costa, num desnudamento que não ignora a força da grana: "O chão da prisão militar/ Meu coração um fogareiro/ Foi só fazer pose e cantar/ Presa ao dinheiro". Com pulsante programação eletrônica de Kassin, conferindo arranhões e temporalidade à voz de Gal, a canção ilumina os dois artistas interligados na origem; e cúmplices no desvio. O fluxo autoral de Caetano não "carrega" sua maior intérprete. O canto é a síntese: "Espírito é o que enfim resulta/ De corpo, alma, feitos: cantar".

Em 1964, estavam irmanados nos shows "Nós, por exemplo" e, passados três anos, no LP "Domingo". Durante o exílio de Gil e Caetano, no pós-AI-5, a baiana segura o projeto tropicalista, radicaliza as experimentações musicais e valoriza compositores da linhagem de Jards Macalé, Waly Salomão e Luiz Melodia. Em 1974, reencontram-se em "Cantar", essencial para ressaltar a força de Gal em sons mais pacíficos. Distanciam-se na fase "Tropical", mas permanecem alinhados a um objeto não-identificado, como comprovará "Minha voz, minha vida" (1982) em sua íntima harmonia: "Vida que não é menos minha que da canção". De novo umbilicais em "Recanto".

O músico Paquito encontrou o diabo no meio do redemoinho. "Gal e Caetano se reconhecem, transformam-se no que cantam, se amalgamam: cara de um, focinho de outro, máscaras do mundo. Em comparação com a perspectiva mais individual do Cê, o olhar em torno", decifra. Apesar de ousado, o predomínio dos sons eletrônicos não é novidadeiro para Gal, uma das personalidades instauradoras da diversidade do Tropicalismo. "Recanto" a devolve à grande arte e ao plano merecido de artista fundamental para ler e reler o Brasil. Até os méritos do álbum anterior, "Hoje", aberto a compositores jovens, não disfarçavam essa necessidade de recriar-se.

O desassossego de "Recanto" provoca estranhamentos, bem verdade. E não saímos deles, a não ser pelas janelas de "Cara do Mundo" e de "Mansidão", as canções mais solares. "Autotune Autoerótico", referência ao recurso que corrige deslizes na voz, o qual "não basta para fazer o canto andar", exerce a crítica dentro da experimentação. Os produtores Caetano e Moreno Veloso adequaram a base eletrônica de Kassin aos graves da cantora de 66 anos. "Neguinho", com sintetizadores de Zeca Lavigne Veloso, ressoa como a mais provocativa.

O Caetano discursivo, afeito a polêmicas públicas, manifesta-se na representação do consumismo sem lastro moral; sim, rejeita mas se reconhece no Brasil que emerge nos anos dos governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. O indefinido "neguinho" somos nós: "Se o nego acha que é difícil, fácil, tocar bem esse país/ Só pensa em se dar bem - neguinho também se acha/ Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz/ Neguinho também só quer saber de filme em shopping". O contraponto aparece na faixa "Sexo e dinheiro", num arranjo religioso, capaz de preencher catedrais: "Dinheiro é uma abstração/ Sexo é uma concreção: luz".

Não haverá danos maiores se ajustarmos a busca por instabilidade de "Recanto" ao trecho de uma velha crônica de Caetano, publicada no "Pasquim", em 1970, a respeito da sede de transição dos músicos inovadores nos anos 60: "ninguém está à vontade no papel de figura definitiva de uma bela história". Na última década, a obra de Caetano aparenta uma insurgência contra si própria, relutante em assumir o papel confortável que a história já lhe confere. Gal Costa não serve de puro instrumento. Protagoniza. A Caetanave é errância, mas a poesia e o recanto, claridade.



***

Show "Recanto"
Datas: 23, 24, 29, 30 e 31 de março
Horário: 22h
Casa Miranda (http://mirandabrasil.com.br)
Avenida Borges de Medeiros, 1424 - Piso 2 - Lagoa - Rio de Janeiro


Nenhum comentário: