sábado, 31 de março de 2012

Maria Bethânia: "A estupidez faz mais barulho que a poesia"

Claudio Leal
Do Rio de Janeiro

No lançamento do disco "Oásis de Bethânia", na sede gravadora Biscoito Fino, no Rio de Janeiro, a cantora Maria Bethânia comentou, pela primeira vez, os ataques ao projeto de divulgação de poemas em língua portuguesa na internet, através do blog "O mundo precisa de poesia", coordenado pelo cineasta Andrucha Waddington e pelo antropólogo Hermano Vianna. Os produtores foram autorizados a captar até R$ 1,3 milhão na Lei Rouanet. Bombardeado por críticas, o projeto terminou arquivado. Na conversa com jornalistas, Bethânia abordou de forma indireta e, por um momento, sem sutilezas, sobre a polêmica.
"O blog, eu não abortei. Primeiro que eu nem engravidei dele (sorri). Depois, o blog é do Hermano (Vianna) e do Andrucha, meus dois amigos amados. A ideia, a sugestão, tudo deles. Eles assistiram a uma leitura minha, na Casa dos Saberes, e ficaram encantados, me passaram a ideia. Foram me convidar para ser a intérprete desses projetos, dizendo os textos. Fiquei honradíssima e falei: se me chamarem, eu vou correndo", relatou a cantora baiana. "Mas aí teve aquele desagravo tão pesado, soturno. Hermano se zangou muito e escreveu: afinal o Brasil não merecia, não precisava de poesia. E cancelou o projeto, com toda razão. Mas o projeto é dos dois. Espero que um dia eles possam fazer. Porque era útil. É bonito. (...) O meu nome ficou assim, entre o Hermano e o Andrucha, o nome que podia mais causar um frisson. E aproveitaram. Como há muito tempo, desde que eu me entendo por gente, sou muito séria, faço meu trabalho, faço minha vida sossegada, não sou de turma, não me dou, minha praia é minha praia... Isso, há muitos anos, vem causando muita reverência, muito respeito, muito reconhecimento... Chega uma hora que incomoda".
Com pequenas pausas, ela relatou o que sentiu após os ataques, citando um trecho da música "Querido diário", presente no disco recém-lançado de Chico Buarque: "Aí aproveitaram essa coisa pra me bater. Me bateram. Mas eu andei. E eu sou como Chico Buarque: não quebro, não, porque sou macia."
Antes desse comentário, Bethânia afirmou que "o mundo está grosseiro, está sem classe, sem delicadeza".  

Terra Magazine questionou se, a partir dessa percepção, ela considera que o interesse por poesia diminuiu no País. "Não diminuiu nada. É uma fome que você não imagina. Mas é assim alucinante. Não só poesia, mas literatura de um modo geral", defendeu a artista. "Você vê a bienal infantil, a loucura que é. Vi ontem que o Brasil bateu recorde mundial de visita a uma exposição. Isso é maravilhoso. A vontade, a sede, a fome de cultura é cada vez maior. Cresce no mesmo volume da estupidez. Agora, a estupidez faz mais barulho. A poesia... A Neide Archanjo repete o Baudelaire, se não me engano: a poesia é uma pétala que cai sobre o abismo... A cavalaria vem e explode sobre ela. Mas a fome existe", comparou.
  
Com doze músicas, o disco "Oásis de Bethânia" inclui uma canção que não deixa de pesar como uma resposta aos detratores: "Calúnia" (Marino Pinto/Paulo Soledade), consagrada pela voz de Dalva de Oliveira, uma das principais referências da cantora - "Quiseste ofuscar minha fama/ E até jogar-me na lama/ Só porque vivo a brilhar/ Sim, mostraste ser invejoso/ Viraste até mentiroso/ Só para caluniar". Brincou com os jornalistas: quem quiser que vista a carapuça. O disco traz ainda um texto escrito pela cantora em 2010: "Carta de amor", que dialoga com os versos do auge das farpas públicas trocadas por Dalva e Herivelto Martins. "Eu escrevi esse texto, entre milhares, no ano passado, nem lembro quando, e foi bom escrever. Eu precisava escrever essas palavras. Escrevi e eu precisava dizer depois essas palavras. Disse. Não sei se é bom, se é mau, se é bonito, se é feio... Certo ou errado."

Mais adiante, Bethânia procurou não limitar o alcance da junção de letras, mas reconheceu que pode favorecer a interpretação de que representa uma resposta às críticas ao projeto de poesia. "Na verdade, primeiro que eu não escrevo pra quem eu acho que não possa compreender. Eu escrevo pra mim. Acho que eu posso me compreender um pouquinho. Pro meu analista, mostro muitas coisas pra ele, pros meus amigos, atores, diretores, Fauzi Arap, Elias (Andreato)... Pessoas de dentro da minha vida e do meu coração. Pra essas pessoas, eu escrevo. Eu acho que serviu... A escolha de 'Calúnia'. Eu sempre passo no repertório de Dalva, em qualquer trabalho. Me veio 'Calúnia' e eu disse: pronto, é um bom prólogo pra esse texto", contou Bethânia. E sugeriu: "Dentro desse contexto e de todos os outros contextos que funciona. É como roteirista de show. Tá nítido ali. Na dramaturgia, eu acho que está claro. Então, escolhi assim. Mas eu não posso dedicar: fiz isso pensando... Porque fica pequeno. Eu faço. Atinge... A brincadeira de 'Carta de amor' é porque é, sinceramente, uma carta de amor para mim. Eu escrevendo pra me livrar de demônios, angústias, dores, mágoas ".

Segundo a cantora, o disco "se dirige para uma mudança cênica". Mas não quis adiantar detalhes do show que nascerá do seu "Oásis", cuja capa traz uma foto de Gringo Cardia do sertão de Alagoas. "O sertão é o silêncio, a resignação e a dignidade", disse. Ela também analisou, na entrevista, os trabalhos recentes de Chico Buarque, Caetano Veloso e Gal Costa. "Chico fez um dos discos mais bonitos do mundo".

"Caetano que me deu ("Recanto"), no dia de Natal. Passamos na casa de minha mãe. Me deu de presente: 'Eu dediquei a você e ao Gil'. Eu disse: 'É o quê? Gilberto, tudo bem, músico e compositor da vida de Gal. Mas, eu?'... Ouvi o disco inteiro, lógico. É um disco que não é para ouvir toda hora, nem todo dia. Caetano é exuberante, cruel, dorido demais. Fiquei apaixonada pela primeira faixa", declarou Bethânia. Na análise do disco da companheira geracional, ela destacou a marca da autoria de Caetano. "Achei muito bem cantado. Não é um disco simples, não é um disco comum, não é um disco qualquer. Primeiro de tudo, eu acho que o Brasil, que tem no mesmo ano um disco inédito de Caetano Veloso e de Chico Buarque, isso é privilégio dos maiores. Caetano chamou a Gal para interpretar o seu ineditismo. Chico fez ele e os parceiros de música, João (Bosco) tocando... Tudo lindo. Eu acho dois trabalhos lindos, completamente diferentes, apaixonantes... Acho que é merecido, é um reconhecimento à cantora que sustentou o movimento que ele e Gil criaram. Por isso eu não entendi ser dedicado (a mim)... Ele, Gil e Gal foram o centro do Tropicalismo. E Gal sempre foi a intérprete disso. Nada mais justo do que reconhecê-la, homenageá-la e reverenciá-la fazendo o disco. Não é um disco qualquer. É o Caetano".

No final da coletiva, a filha de Iansã correu para a frente da casa da Biscoito Fino e fez uma saudação ao orixá: "Vou pegar um pouco de chuva!". 
( Publicado pelo Terra Magazine em 28/03/2012)

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