quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Água Viva: a beleza intrigante de um poema escrito em prosa



Em 1973, Clarice Lispector, a mais representativa escritora brasileira, inovou e intrigou a nossa crítica e o público leitor, com seu livro inclassificável, numa perspectiva de gênero literário, Água Viva. Assombrou  ao desfiar em forma de prosa, numa feição de missiva, um texto erguido a um tipo de expressão literária só possível sob os aspectos fundantes da forma e da linguagem poéticas. Transgrediu mais uma vez com sua personalidade criativa as regras esculpidas por quem ditava os cânones literários no Ocidente, naquele período.

Água Viva é outro marco deixado por Clarice na literatura brasileira e, sem dúvidas, em toda literatura produzida no mundo. O enredo, transcorrido do jeito de uma não história, se apresenta em variadas impressões de uma mulher artista plástica que escreve ao seu "ex-amor". Escreve  para noticiar momentos de suas sensações, pensamentos, dessentidos, apreensões, fugas, reinvenções, medo, desejo, tristeza, amor em solidão. A missivista inventa uma linguagem para vencer a falta que seu amor lhe faz e, em estesias literárias, em passagens que exprimem o absurdo, e metáforas às vezes inalcançáveis, alonga-se, sem cansar o leitor, em falas que revelam  a riqueza poética da grande escritora nascida na Ucrânia, criada e socializada, desde criança, no Brasil, mas universal  por  revelar-se um dos maiores talentos da literatura feita no mundo no século XX.

O livro é em prosa, mas significa um poema por inteiro. Tem alegria também. E repousa em frases que desarrumam o leitor e promovem  reflexões e sentimentos que abundam em epifanias geradoras da  mais profunda fruição literária.

A linguagem se exprime assim: "Eu que venho da dor de viver. E não a quero mais. Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a inconsequência. Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e aguento-a não como um dom   mas como heroísmo: sou  heroicamente livre. E quero o fluxo". A sensação que o texto nos dá é que o mesmo desliza feito  água, e queima como água-viva descrita numa  paisagem  aquática que mescla altivez e saudade, quando na dor, expressa ali, quem ganha é a arte.

Esta  obra  mexeu  com o imaginário de vários artistas como Maria Bethânia, Fauzi Arap, Cazuza, Cássia Eller. Também, alimentou  a  ideia sobre Clarice Lispector  como uma escritora difícil e hermética, já que  muitos consideraram  o  livro  nada comunicativo e fechado em sua mensagem literária. Este panorama  reforça que, numa recepção  tão  controversa, este livro  ultrapassou  as  polêmicas, subverteu os ditames, para torna-se um  romance  sem  história  aparente, com  sua prosa intensamente poética, consolidando-se como outra obra prima erguida pelo gênio clariceano.

Maria Bethânia, em uma de suas récitas mais antológicas,  popularizou  trechos de Água Viva sugeridos  por Fauzi Arap. Como a do final do "livro-poema", em que, numa leve adaptação, ela diz:

Depois de uma tarde de quem sou
E acordar a uma hora madrugada em desespero
Eis que às três horas da madrugada eu acordei
E me encontrei.
Calma, alegre, plenitude sem fulminação.
Simplesmente isso: eu sou eu e você é você.
É lindo, é vasto e vai durar.
Eu não sei bem o que vou fazer em seguida,
Mas por enquanto
 Olha pra mim e me ama...
Não, tu olhas pra ti e te amas.
É o que está certo.

A beleza intrigante de Água Viva merece sempre ser relida. E para quem  não leu, encontre-se consigo nesta leitura, permita-se  a  viajar  entre  as  suas  palavras sensoriais, extensivas à fruição da música, da pintura, da arquitetura, da botânica, da dança, da literatura e mais, da POESIA.

Marlon Marcos é poeta, jornalista e antropólogo.

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