Em 1973, Clarice Lispector, a mais representativa escritora brasileira,
inovou e intrigou a nossa crítica e o público leitor, com seu livro
inclassificável, numa perspectiva de gênero literário, Água Viva. Assombrou ao desfiar em forma de prosa, numa feição de
missiva, um texto erguido a um tipo de expressão literária só possível sob os
aspectos fundantes da forma e da linguagem poéticas. Transgrediu mais uma vez
com sua personalidade criativa as regras esculpidas por quem ditava os cânones
literários no Ocidente, naquele período.
Água Viva é outro marco deixado por Clarice na literatura brasileira e, sem
dúvidas, em toda literatura produzida no mundo. O enredo, transcorrido do jeito
de uma não história, se apresenta em variadas impressões de uma mulher artista
plástica que escreve ao seu "ex-amor". Escreve para noticiar momentos de suas sensações,
pensamentos, dessentidos, apreensões, fugas, reinvenções, medo, desejo,
tristeza, amor em solidão. A missivista inventa uma linguagem para vencer a
falta que seu amor lhe faz e, em estesias literárias, em passagens que exprimem
o absurdo, e metáforas às vezes inalcançáveis, alonga-se, sem cansar o leitor,
em falas que revelam a riqueza poética
da grande escritora nascida na Ucrânia, criada e socializada, desde criança, no
Brasil, mas universal por revelar-se um dos maiores talentos da
literatura feita no mundo no século XX.
O livro é em prosa, mas significa um poema por inteiro. Tem alegria também.
E repousa em frases que desarrumam o leitor e promovem reflexões e sentimentos que abundam em
epifanias geradoras da mais profunda
fruição literária.
A linguagem se exprime assim: "Eu que venho da dor de viver. E não a
quero mais. Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero
também a inconsequência. Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à
liberdade e aguento-a não como um dom mas como heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo". A
sensação que o texto nos dá é que o mesmo desliza feito água, e queima como água-viva descrita numa paisagem aquática que mescla altivez e saudade, quando
na dor, expressa ali, quem ganha é a arte.
Esta obra mexeu com
o imaginário de vários artistas como Maria Bethânia, Fauzi Arap, Cazuza, Cássia
Eller. Também, alimentou a ideia sobre Clarice Lispector como uma escritora difícil e hermética, já que
muitos consideraram o livro
nada comunicativo e fechado em sua
mensagem literária. Este panorama reforça que, numa recepção tão controversa, este livro ultrapassou as polêmicas, subverteu os ditames, para torna-se
um romance sem história
aparente, com sua prosa intensamente poética,
consolidando-se como outra obra prima erguida pelo gênio clariceano.
Maria Bethânia, em uma de suas récitas mais antológicas, popularizou trechos de Água Viva sugeridos por Fauzi Arap. Como a do final do
"livro-poema", em que, numa leve adaptação, ela diz:
Depois de uma tarde de quem sou
E acordar a uma hora madrugada em desespero
Eis que às três horas da madrugada eu acordei
E me encontrei.
Calma, alegre, plenitude sem fulminação.
Simplesmente isso: eu sou eu e você é você.
É lindo, é vasto e vai durar.
Eu não sei bem o que vou fazer em seguida,
Mas por enquanto
Olha pra mim e me ama...
Não, tu olhas pra ti e te amas.
É o que está certo.
A beleza intrigante de Água Viva merece sempre ser relida. E para quem não leu, encontre-se consigo nesta leitura,
permita-se a viajar entre
as suas palavras sensoriais, extensivas à fruição da
música, da pintura, da arquitetura, da botânica, da dança, da literatura e
mais, da POESIA.
Marlon Marcos é poeta, jornalista e antropólogo.
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