domingo, 3 de abril de 2011

Maria Bethânia: revelações que uma voz traz


Ninguém está acima do bem e do mal em nossas relações sociais; ninguém deve escapar da crítica e do controle sócio-político que defenda os interesses coletivos de um povo, de um país. Todavia, qualquer defensor dos interesses sociais e da receita que sustenta o andamento econômico de uma nação, não pode viabilizar, em nome de uma fiscalização estapafúrdia e daninha, o linchamento midiático, público e privado, de nomes que consagram a nossa cultura e que, do lugar que ocupam, fazem nascer possibilidades de um destino melhor para grande parcela da sofrida população brasileira.


Penso em Maria Bethânia. 46 anos de carreira impecável, se impondo contra os padrões da mídia que a ajudou a se consagrar como um mito contemporâneo brasileiro. Uma mulher que estudou só até a antiga oitava série ginasial, e é considerada por intelectuais, como o baiano Paulo César Souza, tradutor de Nietzsche e Freud no Brasil, como um “gênio brasileiro”. Uma artista voltada a registrar em sua obra a poética popular de nossa inventividade e nos levar para o esquecido interior deste extenso continente, pautando a favor da beleza e da dignificação social: o negro e o índio, o caipira nordestino e os violeiros dos sertões; traz na voz a sonoridade genial de Roberto Mendes e as canções primorosas de Roque Ferreira. Ressignifica, ao adorar a memória de uma iyalorixá, a pluralidade sacerdotal neste país de tantas etnias e matrizes culturais diversas. Uma mulher comum no seu jeito cotidiano de ser e rara quando sobe num palco.Uma militante da palavra feito poesia. Aquela que, desde os 19 anos, mistura a aridez do sertão nordestino às águas salgadas do poeta Fernando Pessoa; a que espalha a genialidade em expressão feminina de Clarice Lispector à de expressão masculina de Guimarães Rosa. A que puxa um ponto de caboclo e sai com Melodia sentimental, de Villa- Lobos, sem adulterar nada nem ninguém. A cantora, no Brasil, que melhor singra os mares de qualquer poeta em língua portuguesa e canta a beleza como razão de ser.


Consagrada e bem paga como deve ser. Menos que Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Xuxa. Maria Bethânia é corpo integrante desta sociedade capitalista, que rima qualidade com valor de mercado, e para sobreviver, do alto da sua exigência artística, altivez existencial e ares de diva, tem que “saber cobrar, lucrar” para continuar no mainstream da Música Popular Brasileira e ter poder de captar recursos para espalhar a tal poesia que todos esquecem todo dia; lembram hoje , porque o belo projeto “ O mundo precisa de poesia”, que reúne outros monstros como Andrucha Waddington e Hermano Vianna, poderá custar 1 milhão e trezentos mil reais.O subtexto mais profundo é o de que poesia é das praças, dos bares, das ruas; que os poetas de verdade morrem como Castro Alves, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Ana Cristina Cesar; ou seja, dão à poesia o lugar da miserabilidade, do tipo: Caio Fernando Abreu, em Londres, lavando prato, e na livraria em frente, seu livro Morangos mofados traduzido em destaque, e ele bem poético, sentindo fome e frio, em nome do tal heroísmo brasileiro.


Ou então, culpam Maria Bethânia por seu poder de barganha acima dos possíveis defeitos da Lei Rouanet; satirizam com projetos de outros blogs menos “caros”; ofendem, cretinamente, a artista como gananciosa e desonesta. Provando que, os fiscais desse Brasil não têm memória histórica e sensibilidade poética para alcançar as sutilezas deste projeto que são bem maiores que a quantia que poderá ser captada.


Sou fã de Maria Bethânia, me impressiono com sua entrega artística, a voz incomum, o trabalho de pesquisa, a beleza rascante anti-padrão, os ensinamentos antropológicos que me chegam a partir dos seus trabalhos e mais que tudo, me desequilibro com suas récitas louvando a língua portuguesa e que me ensinaram muito da poesia que me acompanha todo dia.Maria Bethânia se ergue das grandes epifanias que a literatura lhe faz e as traz na voz para este mundo cada vez menos poético.

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