segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Baixo-astral

Ferreira Gullar
NÃO QUE ele pensasse em se matar, mas, se a vida tivesse outra porta, sairia por ela aquela tarde. Era uma tarde de sábado, iluminada de sol, o que o deixava ainda mais arrasado. Nada pior do que um dia lindo, se a vida não parece ter sentido.Olhou para os móveis da sala: quatro poltronas, uma mesa de centro, uma estante e outra mesa menor com o telefone. Pensou: tanto faz estar aqui, agora, como não estar mais, já que esta sala estaria assim mesmo, quer eu tivesse morrido ou ido à esquina comprar jornal. Se ao menos o telefone tocasse e alguém lhe dissesse alguma coisa, qualquer coisa. Até mesmo uma má notícia. Melhor uma notícia má que nenhuma. Mas não, o telefone parecia mudo para sempre, como se já ninguém morasse ali. Na casa dos mortos o telefone não toca mais, pensou. E decidiu sair dali, antes que se atirasse pela janela.
Desceu pelo elevador, cruzou o hall e chegou à rua, por onde passavam grupos de pessoas de calção e maiô, rumo à praia, que ficava a uma quadra e meia de sua casa. As pessoas, na sua maioria, conversavam alegremente e riam, como se vivessem uma outra existência, que não a dele. De onde tiram essa alegria?Não entendia por que a vida se havia tornado tão destituída de sentido. O mundo estava alegre, cheio de sol, a brisa que vinha do mar brincava nas folhas, era uma festa. A festa que o animava outrora e que, agora, parecia-lhe uma irrisão.Sem destino certo, foi caminhando, pois isso era a única coisa que conseguia fazer: andar, andar à toa, porque, se se mantivesse parado, como estava dentro daquela sala, alguma coisa terrível ocorreria, ou ele temia que ocorresse.O melhor mesmo era andar sem rumo, porque, para isso, não precisava buscar razões, já que não encontrava razão para coisa alguma. E assim foi andando, sem razão e sem rumo. O vazio pesava sobre ele com o peso que o nada tem.A avenida junto à praia escancarava-se à luz da tarde. Lá adiante, a faixa ampla de areia branca reluzia como uma espada.
Gente e barracas coloridas derramavam-se por toda a extensão da areia.Foi então agredido por aquela alegria externa a ele e que, de fato, nada lhe dizia. Caminhava junto aos prédios, cuja sombra o protegia do sol.À porta da garagem de um deles, uma mendiga, aboletada entre dois sacos imundos, cheios de latas e pedaços de isopor, ocupava-se em costurar um pano imundo, que parecia uma blusa. Feliz de quem encontra sentido em costurar um pano sujo. As coisas só têm o sentido que lhes atribuímos, não importa se é um trapo achado no lixo. E seguiu em frente, sem se deter, porque um homem se aproximava puxando dois cães de aparência feroz pela coleira. Eles ladravam e ameaçavam avançar sobre as pessoas. Afastou-se sem pressa, quase indiferente à fúria dos animais.Adiante foi despertado de sua encucação por um casal de jovens, que o abordou sorridente. Eram de São Paulo e queriam ser fotografados em frente ao Copacabana Palace. O rapaz entregou-lhe a minúscula máquina fotográfica, postou-se abraçado à companheira. Batida a foto, os dois agradeceram a gentileza e se foram, enquanto ele continuou seu caminhar sem destino.Ao chegar à esquina da rua Prado Júnior, depois de muito andar, parou um instante para descansar um pouco e se deu conta de que, no edifício em frente, há muitos anos, morara uma artista plástica, que costumava reunir amigos em seu apartamento, ali, no oitavo andar, para lhes mostrar seus trabalhos.
Tornara-se, mais tarde, um nome internacionalmente conhecido.E agora, quem moraria no apartamento? Algum dos filhos ou uma família desconhecida, que nada sabia do que ali se passara? As paredes não guardam nada do que se vive entre elas; só na mente das pessoas o passado persiste, pensou e cruzou a rua noutro tempo que aquele em que caminhava.Ia em direção ao Leme e, por isso, decidiu parar. Haveria lembranças demais dali para adiante. Atravessou as pistas em direção ao calçadão até defrontar-se com o panorama de areia e mar, onde o presente o inundou. Uma lufada de sol e brisa trouxe-o do fundo de si para o fervilhar da vida, da agitação vesperal que ocupava o mundo, onde ciclistas, crianças, moças, meninos, gente de muitas cores e tamanhos circulavam, falavam, tomavam água de coco.
De novo o passado tentou se insinuar para outra vez lançá-lo no vazio e no desespero. Mas não conseguiu.Abriu a camisa, tirou os sapatos e, com eles nas mãos, caminhou sobre a areia frouxa em direção ao mar. O mar azul e atual, que o fez de novo sorrir para a vida, sempre recomeçada. Mar azul, barco azul, ar azul.
P.S.: Esta crônica foi publicada na Ilustrada, na Folha de São Paulo;me foi enviada, por e-mail, pelo amigo Cláudio Leal.

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