Marlon Marcos
Especial de Salvador (BA)
As marcas históricas da força da oralidade em culturas ágrafas no mundo podem ser identificadas pelo legado sócio-cultural e religioso de várias etnias africanas e indígenas em países construídos pelo sistema da colonização moderna e que temos como excelente exemplo de formação civilizatória o híbrido Brasil.
No Brasil, país marcado pela inventividade de matrizes culturais africanas, que aqui chegaram ágrafas, a sábia oralidade de povos como o iorubá, nos legou sistemas e práticas religiosos complexos e nos fez reproduzir e reinventar entre nós elementos das chamadas religiões tradicionais ou religião dos ancestrais, âmago perfilador das antigas sociedades iorubanas.
A palavra se constituiu fundamento nos chamados terreiros jeje-nagôs baianos, assim classificados pelo antropólogo Vivaldo da Costa Lima, nome dos mais importantes neste país quando o assunto é a etnologia das religiões de matriz africana; a palavra dita trazia o teor mítico para a composição de todos os rituais litúrgicos do candomblé e reforçava a importância da oralidade como instrumento de transmissão de valores e sentidos religiosos imprescindíveis para a existência do culto aos orixás.
Assim sendo, a sacerdotisa maior, chamada iyalorixá, ou o sacerdote supremo, chamado babalorixá, funcionava (e ainda funciona) como transmissor oral do conhecimento religioso reproduzindo com afinco e imaginação o papel social dos griôs no universo iorubano.
As narrativas musicais na voz de Maria Bethânia
No cenário da Música Popular Brasileira existem diversos compositores que retransmitiram, em sons e letras, os sentidos culturais dos negros iorubanos no Brasil: Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, Baden Powel, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paulo César Pinheiro, entre outros. Tivemos vozes femininas pioneiras amalgamando universos religiosos como o candomblé de ketu e angola, umbanda, quimbanda na rota diaspórica africana em terras brasileiras: Elis Regina cantou Arrastão, O canto de Ossanha, Reza, entre outros sambas afros; Clara Nunes foi a maior porta-voz no formato religioso umbanda, no sentido carioca desta prática religiosa. Agora, no modelo tradicional jeje-nagô de alguns terreiros baianos, o canto mais representativo, em nossa canção, foi e é o de Maria Bethânia.
Antes mesmo de conhecer e se iniciar com Mãe Menininha do Gantois, Maria Bethânia já cantava orixás e caboclos de modo mais disperso e sem as modelares representações estéticas que o candomblé de ketu trouxe para sua arte.
A partir de 1973, tornando-se freqüentadora do Terreiro do Gantois, Maria Bethânia passou a ter posse de um saber litúrgico que ela, com cuidado e respeito, foi integrando ao seu ofício de intérprete e espalhando pelo Brasil a beleza da religiosidade de origem iorubana reinterpretada na Bahia.
A sua voz, de modo freqüente, passou a transmitir trechos de narrativas míticas recriadas por compositores como Caetano Veloso e Gilberto Gil, quando não, de modo integral, a ecoar cânticos sagrados aos orixás do candomblé. Nascia um tipo de cantora, absolutamente dramática, que em sua voz grave hipervalorizava os contornos fonéticos da palavra, pronúncia impecável, baseando-se em dizeres narrativos postos a contar histórias e a preservar tradições nas quais ela sempre acreditou como tradutoras de uma real brasilidade. O Brasil que ela insiste em cantar e perfilar como seu.
Hoje, Maria Bethânia tem 45 anos de carreira sem interrupções. A voz de 63 anos (fará 64 em 18 de junho deste ano) está apuradíssima e sob o total comando da sua vontade expressiva, do seu rigor e simplicidade estéticos, da sua força como intérprete, da sua fé e das suas idiossincrasias que a tornam uma das mais singulares artistas surgidas no cancioneiro brasileiro.
Seus motes musicais encontram fragmentos míticos da historicidade do seu Recôncavo na Bahia; o canto de Maria Bethânia lança luz sobre o povo negro que venceu a escravidão e mesmo ainda sofrendo perseguições ligadas à intolerância religiosa, manteve ativo o candomblé como uma das religiões mais representativas neste país. A voz desta mulher singra os mares da possibilidade expressiva na junção vital da sonoridade à palavra, que ela bem dita a favorecer a difusão do autoconhecimento entre nós brasileiros. A palavra entendida por ela como imprescindível à sua arte; ela que é incansável artífice do formato canção e fez dele também, instrumento de contação de histórias.
Saem do canto de Maria Bethânia escrituras, no mesmo tom autoral que seus compositores e escritores favoritos lhe entregam; escrituras de uma poeta que escreve com a voz naquela intensidade e verdade vistas na canção Palavra, de Moraes Moreira, que encerra o seu trabalho comemorativo de 25 anos.
Então, quando se ouve o canto narrativo de Maria Bethânia, pode-se afirmar: ali está o canto da griô, uma espécie de escritora vocal do Brasil. Atualmente, o maior artista da nossa canção afeito às suas luso-africanidades.
( Publicado no Terra Magazine em 21/04/2010)
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