domingo, 1 de março de 2009

Maria Bethânia a bordo do Bondinho

Maria

Houve um bonde chamado censura que cerceou a liberdade de imprensa a partir de 1968. Mas houve também veículos que conseguiram pegar os atalhos e transitar nas curvas da acidentada trilha da época. O Bondinho - originalmente um guia de informações sobre São Paulo lançado em 1970 que seguiu caminho próprio e se transformou numa revista que simbolizou o poder resistente da imprensa dita alternativa da época - é bem menos lembrado pela história oficial do que O Pasquim. Mas pelo Bondinho trafegaram os maiores artistas da época. O livro Entrevistas Bondinho (R$ 79, 90. 352 páginas), publicado pela Editora Azougue, da autoria de Miguel Jost e Sérgio Cohn reúne 36 entrevistas publicadas nos 13 números da revista entre janeiro e maio de 1972, ano áureo do veículo. São fortes relatos confessionais de nomes como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gal Costa, Gilberto Gil, Jards Macalé, Lanny Gordin, Luiz Gonzaga (1913 - 1989), Maria Bethânia, Milton Nascimento, Os Mutantes, Rogério Duprat e Tom Zé, entre outros astros ligados à música e, na maioria dos casos, ao Tropicalismo.
O livro ostenta impressionante valor histórico porque as entrevistas expõem, de fato, o pensamento e a personalidade dos artistas, com densidade incomum mesmo na imprensa da década de 70 e impensável no jornalismo atual, pautado por entrevistas protocolares feitas por entrevistadores burocratizados com celebridades cerceadas pela autocensura e pelo marketing tosco das assessorias e gravadoras. Escritas fora dos padrões jornalísticos, quase todas as entrevistas - embora datadas - resistem ao tempo pela profundidade com que os artistas abordam as questões propostas ou se revelam para o entrevistador. Arnaldo Dias Baptista, por exemplo, conta que foram os Mutantes que ensinaram a Gilberto Gil e a Caetano Veloso o caminho do rock ("Eles eram músicos de Bossa Nova (...) E eles queriam fazer música pop"). Já Chico Buarque detalha seus problemas cotidianos com a censura que podava sua obra por questões que se tornaram mais pessoais do que propriamente ideológicas. Por sua vez, a entrevista - depoimento seria um termo mais adequado - de Maria Bethânia é, de todas, a mais reveladora e a mais confessional. Em março de 1972, já começando a ser entronizada no altar da MPB por conta do teatral show Rosa dos Ventos, a cantora faz um balanço do ano anterior e admite ter pintado (aprontado) muito. "Fiz horrores... Mas também fizeram comigo. Eu sou a pessoa mais ciumenta que tem na face da terra. Eu faço escândalo de porrada, tapa, tudo. Choro, esmago, eu tenho ciúmes de tudo. Caetano se dana porque eu sou assim", confessa Bethânia.
Menos intenso, Mano Décio da Viola (1909 - 1984) deixava entrever os códigos e as rivalidades entre Império Serrano e Portela, duas escolas de samba do mesmo bairro, Madureira, que, na época, integravam com Mangueira e Salgueira o seleto grupo das quatro grandes do Carnaval carioca: "Quem é de Madureira tá sabendo: Portela pode tirar até o 9º lugar que Natal, homem de poder, não liga, não, doutor. Desde que o Império Serrano tire o 10º". O papo com o bamba imperial é aula de samba. Em alguns casos, como na entrevista de Gal Costa, a excessiva informalidade ou intimidade do bate-papo acaba dispensando a necessária checagem de dados. Quando a cantora avalia seu segundo álbum solo (Gal Costa, 1969) - "Eu gosto dele, mas eu acho ele um pouco confuso, inclusive pelo clima geral que havia entre as pessoas..." - e o compara ao primeiro, a revista põe entre parêntesis que o álbum de estréia de Gal seria Domingo (1967), quando, na verdade, a artista se referia ao seu primeiro LP solo, também intitulado Gal Costa e também lançado em 1969. No entanto, são detalhes pequenos que não diminuem o valor destas entrevistas. Com paradoxal delicadeza, o Bondinho passou como um trator pela cabeça de seus entrevistados e extraiu confissões que a imprensa dita grande jamais iria arrancar deles. Embarque... (MAURO FERREIRA).
( Publicada por Neide de Jesus no fotolog do site www.mariabethania.com )

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