terça-feira, 18 de agosto de 2009

Bosco: "Caymmi é tão radical quanto João Gilberto"

Dorival Caymmi
Cláudio Leal (Terra Magazine)
Há um ano, em 16 de agosto, Dorival Caymmi morria no Rio de Janeiro, aos 94 anos. Presença cordial e canônica, o compositor baiano continua a oferecer um itinerário de sabedoria e candura em suas canções, apesar de ter deixado uma herança difusa na música popular brasileira (o que certamente lhe agradaria).
Em entrevista a Terra Magazine, o ensaísta e letrista Francisco Bosco, autor do livro "Dorival Caymmi" (Publifolha), avalia "a lição de perfeição e simplicidade na articulação entre letra e melodia" deixada pelo Buda Nagô.
- No meu entender trata-se de um projeto de civilização - mestiço, alegre, erótico, com boa dose de ócio - de que o Brasil se afastou, em parte empurrado pelo capitalismo desenfreado em nível mundial - afirma.
Francisco Bosco ressalta que o autor de "O mar" e "Dora" foi tão radical quanto o músico João Gilberto, um dos catalizadores da Bossa Nova.
- Ainda que não pareça, Caymmi é tão radical quanto João: a perfeição da relação letra/melodia é o resultado de uma paradoxal ascese sem esforço. Um rigor assim tão relaxado tem muito a ver com o projeto da bossa nova.
Em seu ensaio publicado em 2006, Bosco faz uma síntese do cancioneiro caymmiano: "Simples, coloquiais, apimentados, dengosos, rebolados, os sambas de Caymmi possuem aquela que talvez seja a virtude maior da canção popular: provocam a vontade de ouvi-los e reouvi-los, de decorá-los (o que se faz sem se dar conta) e cantá-los e cantá-los e cantá-los. São canções que parecem anônimas, parecem ter surgido espontaneamente das igrejas, dos sobrados, das ladeiras, do dendê, do vatapá, do requebrado das baianas".
Leia a entrevista de Francisco Bosco, concedida por email.
Terra Magazine - Se é difícil dizer de onde veio a música de Caymmi, como já falou Chico Buarque, é possível identificar as heranças deixadas por ele na música brasileira?
Francisco Bosco - Até onde posso ver, é claro que o impacto de Caymmi nos cancionistas foi profundo: suas novidades harmônicas, seu violão, digamos, tridimensional, e sobretudo a lição de perfeição e simplicidade na articulação entre letra e melodia são aspectos que se deixam notar na obra de muitos cancionistas seus herdeiros. Entretanto não vejo ninguém cuja obra resulte direta e primordialmente de Caymmi, no mesmo sentido em que se pode dizer, por exemplo, que um
Jorge Vercilo resulta de Djavan.
Em seu livro, você diz que a palavra "dengo" é definidora da representação feminina de Caymmi. Qual é o abismo que o separa do feminino da axé music? O axé não bebe numa fonte em comum, o samba do Recôncavo Baiano?
O abismo, no fundo, é do mundo: o mundo perdeu a inocência.
O antropólogo Antonio Risério situou a obra de Dorival Caymmi numa Bahia "pré-industrial". A urbanização feroz do Brasil, da Bahia, com o crescimento da violência, realçou ainda mais o poético nos sambas sacudidos e nas canções praieiras?
Sim, Risério chega a dizer que, na época que ela surgiu, a obra de Caymmi apresentou como que uma Bahia utópica para o Brasil. Hoje ela revela uma Bahia utópica para os próprios baianos. No meu entender trata-se de um projeto de civilização - mestiço, alegre, erótico, com boa dose de ócio - de que o Brasil se afastou, em parte empurrado pelo capitalismo desenfreado em nível mundial.
Como foi sua aproximação da obra de Caymmi?
Num primeiro momento foi quando eu era bem criança, com uns cinco anos. Meu pai (o compositor João Bosco) colocava Caymmi para eu escutar e eu me lembro de pedir sempre para ele colocar de novo, e de novo, e de novo. Depois seria impossível dizer quando me aproximei, pois Caymmi é como a linguagem: algo que está aí desde sempre.
O talento dele como intérprete das próprias canções não é pouco destacado?
Não percebo isso. Concordo com Risério que não há nada melhor do que Caymmi par lui-même. Os sambas sacudidos e os sambas-canção ainda deixam-se interpretar bem por outros, mas quando se trata das praieiras... Acho que só o próprio mar poderia interpretar O mar melhor que Caymmi.
Há uma leitura de que o Rio de Janeiro é quase que ausente no cancioneiro caymmiano. A fase do "samba-canção" contradiz essa leitura?
Foi uma escolha consciente a de "desprezar" as belezas geográficas?
Deleuze, o filósofo, diria que Caymmi canta um devir-Bahia, isto é, suas canções não recordam um lugar, mas materializam um bloco de sensações, de afetos, que presentificam uma Bahia. A Bahia está para Caymmi como Combray para Proust. Isso me parece o mais importante, e nada tem a ver com desprezar as belezas do Rio (que, depois, nos sambas-canção, como você sugere, ele chegaria a cantar). É que a fonte da obra dele é a Bahia.
João Gilberto sempre se mostrou devedor a Caymmi, mas o que define essa proximidade? A concisão caymmiana é uma dessas influências?
Sim, a concisão, a simplicidade, o tempero incomparável, e uma concepção radical da canção. Ainda que não pareça, Caymmi é tão radical quanto João: a perfeição da relação letra/melodia é o resultado de uma paradoxal ascese sem esforço. Um rigor assim tão relaxado tem muito a ver com o projeto da bossa nova.
O que garante a permanência da música de Caymmi?
O mesmo que garante a presença de todo artista num cânone: a diferença produzida por sua obra.
( Licença para tietar, adoro estes quatro com intensidade: Dorival Caymmi, João Gilberto, Claudio Leal e Francisco Bosco ).

Um comentário:

Calor Humano disse...

Sem dúvida!!!

Caymmi inventou a música do Brasil tanto quanto João!!!

Basicamente, eles os dois foram os pais de tudo o que veio depois deles.

Caymmi, o artista mais subvalorizado na história do brasil.