segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Pestes brasileiras

Esta postagem é imperdível: retirada do Terra Magazine, hoje, 17 de agosto de 2009. Atente, por favor, para o autor:
Milton Hatoum
De São Paulo
Hoje é segunda-feira e há três dias estou no mesmo lugar, que nem boi no confinamento. Um boi sem internet, sem telefone, sem família e amigos. Sozinho numa cabana, como se estivesse ilhado, mas sem a vocação de um Robinson Crusoe, pois não pretendo colonizar nenhuma ilha, muito menos passar vinte e oito anos na solidão absoluta. Se tiver sorte, esta crônica, escrita a lápis, será enviada por um amigo que mora na cidade mais próxima, a noventa quilômetros do meu confinamento rural.
Na manhã da quinta-feira passada, quando plantava raízes de beterraba, fui atacado por um enxame de abelhas ferozes, levei duas ferroadas e passei três dias com febre, falando sozinho e dando tapas no ar. Na minha face esquerda nasceu um calombo tão feio que parei de fazer a barba e até hoje me esquivo do espelhinho do banheiro.
As abelhas enlouqueceram, estão revoltadas, disse um amigo camponês. A rainha sumiu. Por isso, o enxame ataca todo mundo. Elas querem ordem, querem comando.
Jogamos óleo queimado num feixe de lenha, ateamos fogo e esperamos a fumaça afugentar essas voadoras loucas e perigosas, à procura de sua rainha. Fugiram, mas voltaram na manhã seguinte, me picaram e aprisionaram nessa cabana. Pensei nas beterrabas, nos pés de alface, na minha pequena horta sem agrotóxicos. Um dia as abelhas vão embora, mas a revolta do enxame, a ideia de milhares de abelhas revoltadas me atraiu.
Pensava nisso quando um cavaleiro chegou de uma cidade distante e me entregou dois jornais velhos. Notícias da semana retrasada.
Leio, sem surpresa, que um juiz de Brasília censurou o jornal O Estado de S. Paulo. O caso, escabroso, envolve um dos filhos do presidente do Senado e está sendo investigado pela Polícia Federal.
Entendi as causas da investigação, mas não entendi a decisão do desembargador, que proibiu o jornal de noticiar o descalabro.
Pobres leitores! Já não temos sequer o direito à informação. Vejo a fotografia desse magistrado-censor na festança de casamento da filha de um ex-chefão da burocracia do Senado. Uma fotografia incrível, pronta para ser transformada em peça de ficção, em tom buslesco ou sarcástico. Se fosse um concurso de cafonice e mau gosto, todos os personagens da fotografia seriam premiados. E quantos prêmios maravilhosos, querido (a) leitor (a)!
Ah, um lindo anel de rubi falsificado à mulher mais cafona da pátria! Ou seria rubi legítimo, importado clandestinamente por meio de um ato secreto?
Penso na promiscuidade entre os três poderes, na imunidade dos parlamentares e magistrados, na impunidade dessa gente que se lixa para o povo brasileiro. Os políticos pomposos, corruptos, autoritários. Lembrei dos sonetos de Camões, das receitas de bolo e dos quadrados pretos que substituíam as matérias censuradas do Estado de S. Paulo durante a ditadura. Sonetos e receitas inesquecíveis. Viro a página e vejo uma foto de Collor, escoltando Renan Calheiros e o presidente do Senado. Pensei: sou um convalescente de duas picadas de abelha, ainda sinto o corpo febril.
Estou delirando? Ou esses fatos e fotos são verdadeiros? A rainha das abelhas se extraviou. Leio que o rei do Senado e o filho do rei são réus, mas neste país só as abelhas se revoltam. Isso é injusto. Uma aberração da natureza. Será o reino animal mais consciente, mais revoltado e mais organizado que o nosso triste e conformado reino humano?
Se ao menos houvesse abelhas sem rainha em Brasília. Milhões de abelhas ferozes investindo em alguns magistrados, políticos e seus acólitos. Ia escrever alcoólicos, mas não tenho nada contra eles, e eu mesmo, sem ser viciado, gosto de tomar umas e outras.

Um comentário:

Thais Gouveia disse...

adorei a crÔnica muito boa mesmo , realmente o Brasil pede por abelhas revoltadas sem rainha .:)