quarta-feira, 31 de março de 2010

Caetano confirma ideia de produzir novo disco de Gal Costa

Caê
Gal
Claudio Leal ( Terra Magazine)
Uma noite de signos freudianos, em São Paulo, extraiu do compositor Caetano Veloso uma rara interpretação pública de "Mãe", gravada em 1978 pela cantora Gal Costa, no LP "Água Viva". A pedido de Paulo César de Souza, tradutor das "Obras Completas de Sigmund Freud" - lançadas ontem no Sesc Pinheiros pela editora Companhia das Letras -, Caetano venceu o tabu. Acompanhado pelo músico e ensaísta José Miguel Wisnik ao piano, entoou: "Palavras, calas, nada fiz/ Estou tão infeliz/ Falasses, desses, visses não/ Imensa solidão...".
Paulo César de Souza sorri ao justificar a escolha:
- Ele nunca cantou essa música, na verdade. Nunca o ouvi cantando. Sempre achei linda na interpretação da Gal Costa. Isso era um tabu pra ele. Nunca cantou nem em público, nem em particular para os amigos. Eu sabia que ele ia cantar "Pecado original" e perguntei: "E Mãe, nunca vai ter fim esse tabu?".
Como a canção o conduziu a Gal, sua maior intérprete, uma pergunta revolvia. Em recente entrevista ao repórter Marcus Preto, da Folha de S. Paulo (28/03), a cantora baiana revelou o desejo de voltar a ser produzida por Caetano em seu novo disco. Diretor de produção de "Cantar" (1974), ele expôs a ideia numa conversa na Europa. "Estou pronta. Espero o e-mail, o telefonema dele. Assim que ele disser que chegou a hora, eu vou", anunciou Gal. O disco deve ser editado pela Universal Music.
Questionado por Terra Magazine, Caetano Veloso chamou de "bonita" a entrevista da artista, mas não definiu um prazo para iniciar o projeto.
- É verdade, eu disse isso numa entrevista na América Latina, falei que tinha essa vontade (de produzir). Mas eu não sei ainda o que vou fazer. Tem que ver, pensar primeiro o que fazer.
"Até o fim dos tempos"
Na saída para o camarim, Caetano sentiu os ombros agarrados, dramaticamente, por uma senhora: "Como freudiana convicta, eu me sinto vingada! Obrigado por estar à altura da relevância desta noite", proclamou. Eu, hein, rosa! A abordagem acerta Nelson Rodrigues e bate na trave de Freud. E não faltou a "flor de obsessão" no lançamento das Obras Completas do fundador da psicanálise. Depois de cantar "Pecado original", encerrada com os versos "Mas a gente nunca sabe mesmo/ Que que quer uma mulher", o compositor relembrou um telefonema do dramaturgo, na década de 1970.
- Quando fiz essa música (tema de "A dama do lotação", de Neville de Almeida), eu fazia psicanálise no Rio com Rubens Molina. Neville fez o filme e me pediu. E um dia Nelson Rodrigues a ouviu e me ligou, com aquela voz: "Você há de brilhar como sol até o final dos tempos!" (risos) Eu falei isso para o meu psicanalista. Ele me disse: "É, você foi botar a frase de Freud...". Eu não sabia que era de Freud! Se o Rubens Molina estivesse aqui, ele não acreditaria. Eu também não acredito muito em mim mesmo, talvez eu conhecesse. Mas eu não sabia oficialmente que Freud tinha dito essa obviedade sobre as mulheres. Podia até conhecer, mas nunca tinha ouvido como formulada e creditada a Freud.
"Bem, Freud não gostava de música", brincou no início da parte melodiosa da aula-show de José Miguel Wisnik. Além de "Pecado original" e "Mãe", Caetano interpretou um poema de Gregório de Mattos (com música de Wisnik) e - por razões que o leitor e Édipo reconhecem - "Coração materno", de Vicente Celestino. A história do campônio virou um debulhar do mito.
- O incrível é que li uma autora, um livro sobre a presença opressiva da mãe na sociedade americana, e ela conta exatamente essa história (de "Coração materno"). Com queda e tudo. É uma peça do folclore americano. Quando eu estudei em Salvador, a minha professora, que hoje mora em São Paulo, Sulamita Tabacof, deu para a gente ler "Spartacus", que se envolve com Varinia. E lá está a história com queda, perdão e tudo.
Na letra, Celestino retoca a maldade feminina: "Se é verdade tua louca paixão/ Parte já e pra mim vá buscar de tua mãe inteiro o coração". Wisnik lembrou que o professor Antonio Candido remetia essa narrativa edipiana do coração da velhinha a tempos anteriores a Spartacus. "Freud tomou a forma de romance. Com o século 19, mito é romance", Caetano explica.
Traduções
Tema do encontro, a tradução dos ensaios de Freud foi analisada por Paulo César de Souza e José Miguel Wisnik. Há 25 anos, Souza realizou a sua primeira versão de um texto do austríaco. "A Transitoridade", escrito de 1916, foi lido na abertura do evento, para oxigenar o mergulho psicanalítico. Inconscientemente, a publicação desse artigo, na Folha, representou o gérmen do trabalho de verter as obras completas para o português, em 20 volumes. Sua tese "As Palavras de Freud", defendida na USP, ganhou uma edição da Companhia das Letras.
- Freud usou palavras da língua alemã comum, não usou palavras de contexto mais intelectual e filosófico - analisa Wisnik, citando os termos "id, ego e superego". - Elas se consagraram e ganharam presença na linguagem comum.
Para Wisnik, "existe um trabalho de nomeação em Freud que está em processo. As palavras não estão dadas de antemão". O ensaísta usou trechos dos escritores Machado de Assis e Gregório de Mattos para ilustrar os conceitos de inconsciente e de chiste.
Na plateia, a escritora Lygia Fagundes Telles, o psicanalista Contardo Calligaris e os editores Luiz Schwarcz e Maria Emília Bender. O cavalheiro tem razão: convém reforçar a presença de uma freudiana convicta, muito grata a Caetano.

Nenhum comentário: