segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Billie Holiday: a voz autoral de um mito

Billie Holiday

Marlon Marcos

Especial para Terra Magazine

Há cinco décadas, precisamente em 17 de julho de 1959, morria Eleanor Fergan, aos 44 anos, que se imortalizou como a maior diva do Jazz, sob o nome de Billie Holiday. A memória musical do planeta acende-se para relembrá-la e dimensionar o legado de seu canto. Mais que uma simples cantora, Billie foi uma instrumentista da voz. Para muitos, inventou o canto popular. Criou improvisos vocais com a mesma magnitude que os grandes jazzistas desfiavam de seus instrumentos. Sua presença delineou talento, glória, decadência e tragédia, elementos vitais para sua transposição de mortal a mito no universo artístico.
Dona de uma voz tecnicamente pequena, mas de nuances diversas e criativas, Billie foi impecável ao somar uma carga dramática incomum em uma cantora popular a execuções musicais inovadoras. A música a salvou da prostituição e a sua trajetória confunde-se com a grandeza musical estadunidense por mais de três décadas: entre os anos 30 e 50. A cidade de Nova York viu nascer aquela que seria a maior cantora popular - com um pouco mais de 15 anos, ela já acompanhava músicos da estatura de Benny Goodman.

Bela e tida como "negra miscigenada". Adorada e maltratada ao mesmo tempo. Para uns, era branca demais para ser aceita pelos negros. Para os brancos dos Estados Unidos, apesar de ser uma "grande cantora", não poderia freqüentá-los; do palco para os fundos dos lugares em que se apresentava e, por onde também, tinha acesso para ser quase sempre ovacionada em suas apresentações. Billie era proibida de entrar pela porta da frente nas principais casas que se apresentava em seu país e quando no palco, entre drama, bebida, dor, ódio e rara musicalidade, arrancava aplausos sem medidas do mesmo público racista que insistia em hostilizá-la.

Ela foi senhora da sua musicalidade e como tal, operacionalizou transgressões em sua vida, e agredia seus detratores, muitas vezes, agredindo a si mesma. A mulher lançada a paixões quase criminosas e sofridas; seus homens e amantes eram brutais, violentos e exploradores. E em sua caça amorosa, viveu algumas histórias com mulheres, entre elas a poeta Elizabeth Bishop.

A beleza de Billie impressionava a todos e quando cantava ampliava o seu poder de sedução, e nessa junção, ela tornava-se uma fêmea fatal. Foi a Lady Day do grande Lester Young, com o qual Billie gravou preciosidades e de quem ela quase sempre não se afastava. Realçou canções de Cole Porter, Duke Ellington, Louis Armstrong, dos irmãos Gershwin, Kurt Weil e ensinou Frank Sinatra e Tony Bennet a cantarem.

Dizem que a grande marca entre as cantoras brasileiras, ou seja, nossa cantante ancestral é Carmem Miranda. Em se tratando do mundo, habitat que salvaguarda, em presença ou memória, nomes como Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Amália Rodrigues, Elis Regina, Nina Simone, Aretha Franklin, Nana Caymmi, Gal Costa, Norah Jones e Maria Bethânia, todas integralmente, mesmo que neguem isso, curvam-se diante do legado Billie Holiday.

Billie acorda nossa memória sem desespero. E dói. Ouvi-la é ir ao encontro de nostalgias e pela música, negar as barreiras que os idiomas geram. Sua voz é uma representação antropológica da idéia que fazemos da melancolia. Rasga fazendo silêncio. Traz tristeza criativa. Imita o sax para ser um canto sobre-humano. Ela não morre enquanto houver canção neste planeta. E se a canção se esgotar, a sua memória de instrumentista da voz chegará a todos pelo imorredouro exemplo de talento feminino que ela impôs ao humano na evocação do seu próprio mito.

( Texto publicado no Terra Magazine em 31 de julho de 2009).


Um comentário:

Vinildo disse...

ótimo texto! parabéns!