sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Maria Bethânia sem ressentimento


"Não tem saudade nem mágoa, meu amor fala outra língua", canta Maria Bethânia no álbum Tua

Agora sim, Cláudio Leal, do Terra Magazine, analisa os CD's de Maria Bethânia, lançados no final de 2009. Analisa com a propriedade que lhe é peculiar, e assegura, do seu jeito e em suas reflexões, que Tua, obra prima pra mim, é o melhor CD lançado no Brasil em 2009. Quando ele fala e escreve, eu ouço e leio; ainda mais quando o assunto é Maria Bethânia.


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Claudio Leal


"Bethânia não ensaia". O aviso do funcionário da Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, anos atrás, fazia sentido algum. Bethânia ensaia as canções, rumina as palavras, arquiteta os gestos - nada que denuncie improvisos. Mas na frase havia uma verdade de palco, uma intuição do quanto ela trazia uma voz alheia a qualquer cobrança de ensaio ou retoques, como se a entrada em cena fosse sempre o momento instaurador de um talento independente. Porque diante dela, e de raras intérpretes, pode-se adaptar a definição do escritor americano Mark Twain sobre a atriz francesa Sarah Bernhardt: "Existem cinco tipos de cantoras: más, medíocres, boas, grandes - e Maria Bethânia".
E não se converta seus admiradores em súditos. Há algo de incomum na trajetória de uma cantora que, aos 63 anos, lança dois discos com canções inéditas - Tua e Encanteria -, o último abordando a religiosidade brasileira, numa coerência nem um pouco rasa com seus trabalhos anteriores, de "Brasileirinho" para cá. A recepção um tanto morna da crítica ao lançamento de Tua, sem dúvida dos grandes discos de Bethânia, além de se relacionar com as leituras preconcebidas de jornalistas sobre as obras de artistas veteranos, não deixa de estar vinculada ao repertório do disco, que contrasta com a onda de rancores na vida nacional, sem excluir os recalques de músicos da sua geração.
Sobretudo sem ressentimento, Maria Bethânia canta em "Você perdeu", de Márcio Valverde e Nélio Rosa: "Não tem saudade nem mágoa/ Meu amor fala outra língua". Com onze canções, Tua traz pelo menos cinco brilhantes: "É o amor outra vez" (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), "Tua" (Adriana Calcanhotto), "Saudade" (Chico César e Paulinho Moska) e "Domingo" (Roque Ferreira). A quinta, "Até o fim", é uma obra-prima de Arnaldo Antunes e do músico baiano César Mendes, fino registro do amor inconcluso, do desequilíbrio dos corpos quando se insinuam mas não vão, leveza ressaltada pelo acordeon musette de Toninho Ferragutti:
"Se a gente não sabe se amaSe a gente não sabe se querNão vai saciar essa chamaSe não decifrar o que é
(...)
É que o amor não se dissolve assimSem dorSe não forAté o fim".


Dá para extrair outras conexões entre os dois discos, mas predomina no cancioneiro uma discreta recusa aos desvios da urbanidade brasileira. A música de Adriana Calcanhotto, que nomeia um dos álbuns, e "Saudade", de Chico César e Moska, são exceções nesse distanciamento do amor urbano. Quando não há menção ao espaço, o próprio tempo da música e a voz mais arrastada de Bethânia se encarregam de realçar um tom bucólico, numa atmosfera de casa do interior com portas fechadas, como na bela "Domingo", de Roque Ferreira:
"Veja meu bem Que hoje é domingoDomingo eu não choroDomingo eu não sofroDomingo eu sou de paz e alegriaTristeza hoje eu não estouSaudade volte outro diaDomingo eu não sou boa companhia".


Ou a "Doce Viola", de Jaime Alem, ao céu vasto:


"Doce ViolaArrasta o meu coraçãoMe leva para o sertãoMe levaCanta violaOnde estiver meu amorPois já nem sei quem souSem ela"
Para os ateus, e mesmo os ateus sem o ímpeto das pregações de Christopher Hitchens, o álbum Encanteria pode despertar um interesse menor, pelo latejar de religiosidades. No entanto é nele que se manifesta o difuso retorno de Maria Bethânia a Santo Amaro da Purificação, sua cidade natal no Recôncavo baiano, provada desde os tempos coloniais na inconstância da indústria açucareira. Desta vez o que renasce, no catolicismo mesclado com o candomblé e os ritos de caboclo, é uma Santo Amaro mítica, da infância no quintal de Edith do Prato, bem diversa da cidade de casarões arruinados e do rio Subaé infectado como qualquer outro rio de aldeias maiores.
No Teatro Opinião, em 1965, Bethânia personificou as contradições entre o urbano e o rural, Zé Keti & João do Vale, morros e carcarás. Antes da partida para o Rio, Noel Rosa, Dorival Caymmi e a Bossa Nova se infiltraram em seus primeiros espetáculos, no Teatro Vila Velha, em Salvador, ao lado de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé, Fernando Lona e outros mais. Agora, é como se retornasse à intimidade da casa dos pais (o show "Amor, Festa, Devoção" é dedicado a Dona Canô) e à sonoridade dos terreiros do Recôncavo, inovando ao destacar os rituais de caboclo, marginalizados na Bahia. Apesar de ter experimentado contato anterior com essa vertente religiosa, Bethânia é filha do Terreiro do Gantois, onde não se cultua caboclo.
Nesses reinados de santos, há ainda terreno para uma chula santamarense de Roberto Mendes e Nizaldo Costa, "Saudade dela", acompanhada por Gil e Caetano. Mas, com sete músicas gravadas em Tua e Encanteria, o compositor Roque Ferreira é o que mais se afina ao universo e à órbita particular de Bethânia:
"Um velho preto alaketo Me disse que foiLá de Keto que eu vim Eu já vim predestinada Pra cantar assim Sou iluminada, eu sou, Sou de Keto sim" ("Feita na Bahia")
"Oyá-Bethânia: os mitos de um Orixá nos ritos de uma estrela", dissertação de mestrado do antropólogo baiano Marlon Marcos na Universidade Federal da Bahia, oferece um roteiro e uma chave de significados para compreender este momento da carreira da artista. "Nos anos de 1969 e 1970, Bethânia começou a inserir no repertório dos seus shows vários cânticos do culto aos orixás e cantigas de caboclo, que aprendeu em Santo Amaro", descreve o autor. Ao interpretar um cântico a seu orixá, a cantora gritou no palco: "Eparrei, estou descendo minha Iansã!".
Marlon Marcos prossegue seu estudo sobre a presença de ritos e mitos do Candomblé nas apresentações e representações da cantora: "Sem perder a essencialidade do seu autoprojeto artístico, a imagem de Maria Bethânia liga-se tradicionalmente ao candomblé e à Bahia. Mesmo assumindo a sua forte ligação com a religião afro-brasileira, ela se diz católica e é fervorosa devota de Nossa Senhora".
A aparente incongruência se justifica, pois este é um "outro comportamento muito presente em grande parte do chamado 'povo-de-santo' que, mesmo iniciado e praticante dos rituais religiosos de origem africana, não se afasta das práticas do mundo católico." Sem rupturas, em Encanteria as oferendas às divindades afro-brasileiras convivem com um canto a "Santa Bárbara", "dona das rosas vermelhas".
No palco, Bethânia reintegra todas as leituras contraditórias em torno de sua obra, como se a interpretação potencializasse num canto pacífico os tumultos e as vulnerabilidades da artista. "O meu rigor tanto para música quanto para poesia é a emoção. Se emocionar, eu falo ou canto", declarou. E por emoção pode insinuar arte: má, medíocre, boa, grande - e, entre asperezas e canduras, a de Maria Bethânia.


Terra Magazine



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