segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Meu traumatismo ucraniano

Clarice fita um cabisbaixo Werneck, ainda com a esferográfica na mão


Humberto Werneck

É um danado, esse Benjamin Moser. Lá no Texas, onde nasceu, ele cismou um dia de aprender mais uma língua (hoje seis estão no papo), e, tendo desistido do mandarim, escolheu o português. Não demorou muito e o moço, atualmente com 33 anos, caiu em cima de um livro de uma brasileira nascida na Ucrânia - e caiu também apaixonado. Daí a pouco estava o Benjamin metido na empreitada nada simples de biografar a escritora, com a complicação adicional, para um pesquisador, de estar morando na Holanda, longíssimo de onde viveu Clarice Lispector.

Por indicação de Alberto Dines, o gringo veio bater na minha porta, em São Paulo, falando um português espantosamente bom. Queria saber de uns escritores de Minas de quem Clarice foi amiga. Na minha condição de mineiro não-praticante, não pude ser de grande valia para o Benjamin, mas ganhei sua amizade - e, em incontáveis papos via skype, pude acompanhar a gestação de Clarice, (assim mesmo, com vírgula), livraço até por ter 650 páginas. Não é primeira biografia de Clarice, mas posso afirmar que se trata da melhor até agora. Tiro para o Benjamin meu imaginário chapéu. Que outro pesquisador se abalaria até a Ucrânia em busca de traços de quem lá viveu apenas sua primeiríssima infância, nos remotos anos 1920?

O lançamento do livro, na semana que vem, fez regurgitar a lembrança do meu primeiro e único encontro com Clarice, acontecimento que foi para mim, se me permitem, um traumatismo ucraniano.

Andava eu pelos 23 anos e estava recém-chegado à redação do magnífico suplemento literário que o contista Murilo Rubião tivera a audácia de criar como encarte semanal do insípido diário oficial do governo mineiro. Fiado num conto que ajudara a premiar num concurso universitário, Murilo não só me levou para trabalhar com ele como deu ao frangote desmedida corda. Coro de vergonha retroativa ao recordar a petulância com que eu, peremptório, dava palpite nos irretocáveis contos do próprio Murilo, tendo chegado, Deus meu, a pedir ao escritor perfeccionista que trocasse isso ou aquilo em textos consagrados antes mesmo de minha vinda ao mundo.

Um dia Murilo me contou que Clarice Lispector estava em Belo Horizonte e me encarregou de pedir a ela um conto inédito e uma entrevista. O ano era 1968. Me lembro da reverência embasbacada com que a abordei numa roda de livraria. Não sabia ainda dos espinhos que Clarice eriçava às vezes no contato com estranhos, e gelei quando, ao ouvir o pedido de colaboração, ela indagou, com rude incredulidade: “Mas vocês pagam?” (Sim, pouco mas pagávamos.) E acrescentou, com a dicção rascante de sua língua presa, que estava “muito pobrrre”. Entre outros safanões da sorte, tinha vivido, dois anos antes, o pesadelo daquele incêndio que por pouco não a matou e que apagou um tanto de sua legendária beleza.

Me lembro também de que na véspera da entrevista não consegui pegar no sono. E mais ainda da catástrofe que desencadeei com minha primeira pergunta, inspirada em algo que tinha lido alhures: “A paixão segundo G.H., não sendo um romance…”

Nem pude a concluir a frase. “COMO não é um rrromance?”, rugiu Clarice Lispector, petrificando o aprendiz de repórter. Uma foto, que revejo agora, teve a crueldade de registrar o instante em que, fulminado pelo olhar enviesado de Clarice, baixei a cabeça, disposto a ir lá dentro me suicidar. O que não a impediu, ao fim da entrevista, de pedir para ficar com minha esferográfica de estimação, de tinta violeta, que lhe estendera para um autógrafo no meu exemplar de A maçã no escuro: “Posso ficarrr parrra mim?” Po-o-de… - consegui tartamudear.

(Décadas depois, veja você, folheando o catálogo de uma exposição comemorativa dos 60 anos de Chico Buarque, dei com a reprodução de um bilhete de Clarice para o compositor, no final dos anos 60. O texto, datilografado, tem assinatura em tinta, você adivinhou, violeta! Pode ser a minha chance de entrar na história da literatura brasileira.)

(Publicado no jornal Brasil Econômico)
P.S.: Este artigo me foi enviado, por e-mail, por Cláudio Leal. Claro que foi pra me avisar sobre um possível trauma que também sofreria se eu tivesse tido a honra de conviver com clarice; um trauma ucraniano luxosíssimo!

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