terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A toada de Glória Pires

Glorinha



Fernando Eichenberg,

de Paris, do Terra Magazine




Glória Pires chegou no horário marcado no Café Carlu, em Paris, com ampla vista para a praça Trocadéro e, no horizonte, a Torre Eiffel. O encontro ocorreu no início de novembro, a pedido da revista Serafina (Folha de São Paulo), pouco antes de a atriz embarcar para o Brasil, para a pré-estréia de “Lula, o Filho do Brasil” (estréia nacional neste 1° de janeiro), no qual interpreta dona Lindú, a mãe do atual presidente da República (portanto, antes de receber o prêmio Candango de melhor atriz no último Festival de Brasília – por sua atuação em “É Proibido Fumar”, de Anna Mulayert – e antes do acidente automobilístico de Fábio Barreto, diretor de “Lula…”).
Mãe de Cléo Pires (27, também atriz e filha do cantor Fábio Jr.), casada há mais de vinte anos com o músico Orlando Morais (47), com quem teve Antonia (17), Ana (9) e Bento (5), Glória mora em Paris com a família desde 2008, entre idas e vindas ao Brasil para trabalhos e diferentes compromissos. Aos 46 anos, a mulher, mãe e atriz Glória Pires já pode dizer que viveu bastante. Se não tanto ainda em longevidade, pelo menos em imensidade. De sua primeira aparição nas telas de tevê – aos cinco anos de idade, na novela A Pequena Órfã (TV Excelsior) – até o seu mais recente papel no cinema – como dona Lindú -, Glória se impôs como uma das atrizes mais populares do país.


Parte do resultado de nossa conversa foi publicada na edição de novembro da Serafina (edição do 29/11), e aqui está uma versão maior do nosso encontro.


Recentemente, você fez três filmes no Brasil de registros bem diferentes – “Se Eu fosse você 2″, “É Proibido Fumar” e “Lula, o Filho do Brasil” -, e morando aqui em Paris. Como foi isso?




Foi engraçado. No ano em que mudei para cá (2008), chegamos em fevereiro e já em abril eu estava no Brasil para filmar “Se Eu fosse você 2″. As filmagens acabaram em 10 de junho e no dia seguinte vim para cá. Depois, as férias das crianças aqui (julho/agosto) coincidiram com o filme da Anna Mulayert (”É Probido Fumar”). Foram mais quase dois meses no Brasil. Aí retornei para cá, e no final do ano fui de novo ao Brasil para fazer os primeiros testes de filmagem para o filme sobre o Lula. E assim que passou o réveillon, já começamos a filmar. Então foram praticamente três filmes em um único ano.


Foi complicado?




Foi bom, porque o Orlando facilita demais a minha vida de atriz. Acho que é uma coisa do signo. Ele é de Aquário. O aquariano tem uma visão muito aberta das coisas, então ele vê com distanciamento um leque muito amplo, e isso ajuda muito a organizar o futuro. E foi essa loucura de vai e volta, com três propostas completamente diferentes. Mas achei tão bom isso, fiquei tão feliz, porque é algo tão raro de acontecer. É o ideal de todo o mundo não ficar preso a nenhum estereótipo, ter todas essas possibilidades. Foi um presentaço, porque as três coisas que fiz em cinema foram três filmes de estilos muito diferentes, fiquei realmente feliz.


Você ficou surpresa com o sucesso de “Se Eu FosseVocê 2″?




O “Se Eu Fosse Você 2″ foi essa loucura, esse sucesso estrondoso, graças a Deus. Que bom que se abriram essas portas, foi meio que uma desencantada. Sinto que acabou o restinho de preconceito que as pessoas ainda tinham contra o cinema nacional. O filme abriu para o grande público, falou para muita gente. Na minha academia, por exemplo, quando saiu o primeiro “Se Eu Fosse Você”, um dia um treinador – que nos meus seis meses lá nunca tinha falado comigo – chegou para mim e disse: “Olha, nunca tinha ido ver cinema nacional – e ele era uma pessoa de meia idade -. Fui ver o seu filme, adorei!”. Isso é bacana, porque tira uns preconceitos, isso foi maravilhoso. E agora com o número 2 foi realmente incrível. O filme da Anna acho que é bastante jovem. Logo dei uma cópia para minhas filhas assistirem, querendo ver o que elas tinham dizer. Elas totalmente entenderam e se identificaram com a linguagem do filme. O filme do Lula também já passou pelo crivo delas, já está aprovado, já choraram bastante (risos).


Qual foi o estímulo para fazer “É Proibido Fumar”?




Eu tinha ido no festival de cinema de Recife e assistido “Durval Discos”. Fiquei encantada com o filme. Essa coisa que a Anna tem, esse jeito de contar uma história sem se preocupar em buscar uma moral, de dizer como termina. Não termina, a história continua, só que a gente vai parar de ver. Nós nos encontramos lá, falamos e tudo o mais, e seis ou sete anos depois, quando ela aprontou esse roteiro, me mandou e adorei. Eu queria fazer parte daquele universo da Anna, tinha curiosidade de trabalhar com ela, e adorei a história, adorei o personagem, a Baby, aquele mundinho maluco dela, adorei, adorei. A Anna mostra de uma forma muito imparcial aqueles personagens, a história que ela está observando. É algo tipo: “Olha, tem uma brechinha aqui, vem aqui ver como é”. É uma coisa muito íntima. Ela é muito delicada, e também muito organizada, fiquei muito impressionada.Tudo parecia muito uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, vamos fazendo, mas não, é tudo muito estruturado e organizado. Fiquei impressionadíssima pelo fato de como uma pessoa que faz tudo de forma tão organizada consegue, depois, dar uma cara de que tudo foi feito no improviso. Acho que o resultado é delicioso, fiquei feliz de ter feito parte. E além de tudo ela ficou minha amigona.


Você estava há nove anos sem fumar e seu personagem no filme passa o tempo todo com um cigarro na mão. Não deu vontade de voltar a fumar?




Tinha muito medo disso, mas aquele cigarrinho que colocaram para fazer as cenas é sem nicotina. É muito ruim. Ainda pior do que o com nicotina (risos).
Para interpretar a mãe de Lula, dona Lindú, você teve de se basear quase exclusivamente em relatos, pois não há praticamente nenhum registro dela, imagens, gravações. Havia dela apenas algumas fotos e relatos riquíssimos, apaixonados, acho que isso foi a coisa mais difícil. Mais difícil não, eu não gosto de usar essa palavra. Foi um desafio. Porque ainda hoje ela está muito presente na cabeça de todo o mundo que a conheceu. Ainda hoje as pessoas se emocionam quando falam dela. E já faz uns 30 anos que ela faleceu. Os filhos se emocionam demais. Tudo bem, são filhos. Mas os sobrinhos, primos também. Ela deixou uma imagem muito forte de uma pessoa positiva, pronta para o que der e vier. É aquela ideia: eu tenho dois braços e duas pernas, estou com o mundo ganho, vou onde tiver de ir, nada vai me parar. Ela tinha a doçura e a rudeza da simplicidade, porque era uma mulher que não tinha nenhum trato social, uma mulher simples. Eles tinham algumas posses, que com toda a problemática da seca piorou muito, a vida ficou mais difícil, ela tinha muitos filhos. E com a intuição dela, ela reverteu todos os quadros. Era uma heroína, como há tantas no Brasil.
Como foi para você compor esse personagem?




É um personagem com a qual me identifico, essa imagem da mulher que vai onde for e faz o que for preciso para que sua família fique coesa e andando no trilho. Eu me identifico muito com essa imagem. Mas eu não sabia que ela era assim, fui descobrindo essa mulher, uma pessoa de uma inteligência e de uma percepção da vida muito grande. O processo todo foi muito feliz. As pessoas buscam muito o que foi difícil.




Mas o que é difícil?


Não há nenhuma parte fácil, tudo é complicado.




Mas tem um por que, tem um objetivo nisso?




O meu objetivo era o de ser fiel ao que a família me trazia dela. Eu queria poder mostrar para as pessoas o que a família lembra dessa mãe, dessa tia, dessa prima, enfim, dessa mulher Lindú.
Fábio Barreto diz que a estrutura dramática do filme está baseada nessa relação referencial entre mãe e filho. Você sentiu isso? Eu não conhecia nada da história do Lula, não tinha a menor ideia. Quando o Fábio me falou do filme, que era justamente baseado num livro, que a Denise tinha escrito, eu nunca tinha ouvido falar desse livro (”Lula, o Filho do Brasil, Denise Paraná, ed. Perseu Abramo, 2002). Como é que pode? Era a biografia do presidente da República e eu não sabia nada. Fiquei muito surpresa quando li o roteiro. E hoje, depois de ter feito o filme, ter conhecido um pouco mais da história dele, eu vejo que realmente dona Lindú foi a base, a fundação de toda uma história que veio depois. Ele era muito apegado a ela. Ela era muito o exemplo dele. Assistindo o filme, o que antes me parecia pura pieguice, aqueles “Obrigado a minha mãe” e não sei o que, hoje, aquele discurso de posse adquiriu para mim uma outra dimensão. Claro que é sempre lindo quando você é merecedor de alguma coisa e lembra da sua família, de sua mãe, de seu pai, das pessoas que levaram você até ali. Podia ter dado tudo errado, ter sido o oposto de tudo isso. Mas entendendo tudo pelo o que eles passaram, a coisa tem uma outra dimensão.


Você chegou a ler a biografia antes ou depois do filme?




Não li.O diretor de elenco do filme, Sérgio Penna, disse que você não tinha nada de parecido com a mãe do Lula, mas que, aos poucos, foi-se descobrindo que, internamente, você era a própria Lindú, e que você foi “a mãe que o set de filmagens precisava”. Você é mesmo mãezona assim? Foi genial o trabalho com o Sérgio. Havia muitos atores jovens, inexperientes, crianças, vários níveis de dificuldades no trabalho. O filme cobre um período de tempo bastante longo, com uma quebra de continuidade muito grande, enfim, havia vários agentes complicadores. O Sérgio teve uma sacada genial, reuniu todo o mundo e virou uma família. Interagimos muito, com todos os filhos de todas as idades. E eu até sugeri que o Rui (Ricardo Diaz, ator que interpreta Lula no filme), que em princípio não participaria de todas as etapas, acompanhasse, para que pudesse também ver aquele começo. Isso deu um link incrível. Até hoje chamo alguns atores de “fio” (filho) e de “fia” (filha). Tenho de começar a chamá-los pelos nomes (risos). Foi tudo muito amoroso. E o Fábio é uma pessoa com quem é uma delícia trabalhar, porque ele quer que as pessoas estejam felizes. O objetivo principal dele é que ninguém brigue, que todo o mundo possa dar o seu melhor e de uma maneira feliz.


Você foi mãezona no set e é na vida em geral?




É, tenho essa tendência, sou um pouco assim com os meus amigos, é uma característica minha. Eu gosto de cuidar das pessoas.


No filme, você contracena rapidamente com sua filha Cléo Pires, como sogra dela.


Foi tudo muito rápido. Aquela sequência em que temos o diálogo não existia originalmente, mas o Fábio falou: “Não posso fazer esse filme sem ter uma sequência de vocês duas!”. Ele fez a mesma coisa na participação do meu pai em “O Quatrilho” (1994): “Não posso ter um filme em que vocês dois participam e não ter uma sequência de vocês dois juntos”. Porque, originalmente, também não tinha.
Como você vê a atriz Cléo Pires?




Acho que a Cléo conseguiu uma coisa muito legal, que foi uma independência na forma dela fazer e também em relação a sua imagem. Acho que ela conseguiu algo muito dela. E acho que o resultado é muito bacana, porque ela faz a interpretação do tamanho dela, não busca fazer nada além. É uma coisa muito econômica, gosto do estilo dela, gosto de vê-la, independente de ser minha filha. Além de achá-la linda, acho que o trabalho dela tem consistência. Fico feliz. Acho que ela é séria e dedicada no que ela faz.


Você tem algum orgulho especial por ela ter seguido a sua carreira e a de seu pai, Antônio Carlos Pires (1927-2005)?




Tem uma coisa poética. Mas na verdade acho que todo o mundo quer que o filho seja feliz. Não tenho expectativa em relação ao que eles vão escolher, com quem eles vão viver, o que vão querer fazer da vida. Quero que eles sejam felizes. E eu sinto que ela está se realizando, amadurecendo muito. Mas é algo poético, porque o meu pai foi o primeiro ator da nossa família. Ela já é a terceira geração de atores da família, tem muita poesia nisso.


Você define “Lula, o Filho do Brasil” como um filme sobre questões político-sociais e não político-partidárias. Por que você acha esse um “filme necessário”?




Acho que é necessário para nós brasileiros. Esses anos de ditadura foram extremamente nocivos para a nossa estrutura de cidadão. Eu e toda a minha geração crescemos muito sem a ideia de que, se há alguma coisa errada, você pode reclamar. E onde vamos reclamar? Existe alguém que vai ouvir e que vai ter de dar conta dessa reclamação. Não simplesmente, como se faz hoje – tentando resgatar algo que não tivemos – que é fazer um movimento. Precisamos fazer um movimento, porque a nossa palavra sozinha como cidadão não tem valor nenhum. Se eu recebo uma água ruim, ligo ou entro no site e reclamo, provavelmente isso não vai dar em nada. Precisa ter um quórum, um monte de gente falando da mesma água. Eu tenho certeza de que isso se deve a esse período enorme de silêncio, de proibição, de medo. Esse filme trata de um capítulo importante da nossa história recente, que fala disso também, de como esses operários – que pela classe social a que pertenciam talvez devessem ser os primeiros a recuar – foram adiante e perceberam a força, a importância deles dentro do país. Eles compraram uma onda nada fácil, porque existia uma situação política bem complicada, e foram em frente mesmo assim, pagando pra ver, com todos os problemas de prisão, tortura e tudo o mais o que a gente sabe. Acho que é um exemplo muito importante, porque fala de um homem que teria quase nenhuma possibilidade de se dar bem na vida. O normal seria que ele e os irmãos se tornassem indigentes, que se separassem.




Como numa família numerosa daquelas todos sobrevivem juntos?




Acho que o filme é importante porque fala de muitas coisas que estão à nossa volta, que precisamos enxergar e tomar consciência, que temos um presidente que saiu do nada e contra todas as possibilidades chegou onde chegou. O filme fala de muitas coisas sobre as quais precisamos refletir. Eu adoro o cinema por causa disso. Você sai do filme e depois ficam coisas na sua cabeça, vai pra casa digerindo.


Qual a sua avaliação do governo Lula?




Acho dificíl falar de um governo, porque sabemos que um governo não é feito por uma pessoa, e eu particularmente acho muito complicado essa mistura de partidos. Acho complicado entender como é que pessoas que defendem ideias tão opostas podem se unir em prol de alguma coisa que não seja só poder. Acho difícil falar de política no nosso caso por causa disso, porque são pessoas que estão juntas em torno de uma ideia que nem sempre é o bem comum, que deve ser o ponto final. Na maioria das vezes, é para o fortalecimento da posição de seu partido. Sobre o governo, é difícil ter uma ideia geral, mas acho que como um todo o resultado é muito bom. Vemos isso na projeção que o Brasil está tendo, no espaço que justamente ocupou. Algo está se desenvolvendo. Acho que a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, certas coisas começaram a entrar nos eixos, certas etapas começaram a ser sedimentadas para que pudessem vir as próximas. Finalmente, sinto um progresso, um futuro. Aquele “país do futuro” do qual sempre ouvimos falar, acho que está chegando. Essa nova geração é formada por pessoas que já têm um outro acesso, outra informação, outra cultura, têm oportunidade de se misturar, de ouvir, de debater, e isso é tão importante. Não existe crescimento sem liberdade, sem troca.


Você acha que o fato de o filme ser lançado em um ano eleitoral, pode ter alguma influência tanto na campanha do pleito presidencial como na carreira do filme?




Não sei, acho que cientistas políticos podem falar sobre isso com precisão. Realmente não tenho ideia se isso pode atrapalhar ou se não tem nada a ver. Em relação ao filme, tudo é uma loteria, não há fórmula. Eu fiquei muito empolgada com o projeto, me deu vontade de fazer um esforço para poder fazer esse filme. Além de ser muito bem feito tecnicamente, essa história me interessou demais, me deu orgulho de ser brasileira, de fazer parte dessa raça. Nós, brasileiros, estamos tão habituados a situações tipo: “Não fala que é brasileiro, senão vai sujar!” (risos). Em relação ao filme agora – e acho que sobre isso os produtores podem falar melhor – , acho que se deve a essa projeção enorme que o Lula tem internacionalmente como presidente, colocando o Brasil nesse lugar especialíssimo, onde nunca esteve antes.


O Fábio Barreto já diz que é filme para o Oscar. Você já esteve na festa do Oscar com o “O Quatrilho” e não gostou. Voltaria?




Eu tinha uma visão do Oscar de fã, igual a uma pessoa que assiste a uma novela. Ninguém imagina que aquela mansão é um cenário, que aquilo é tudo mentira. Eu como tiete, que fica vendo “quem vai ganhar?”, não imaginava que era assim. Mas como espetáculo é uma aula, de bem ensaiado, de objetividade, de disciplina e de silêncio, uma coisa de louco. Difícil até de acreditar que aquilo tudo seja feito ao vivo, ali na hora, de tão redondo que transcorre. Se tiver de voltar, volto, mas já sabendo que é tipo uma novela.


Como você vê, hoje, o cinema brasileiro?




Acho que estamos começando a ter uma ideia de mercado, de o quão importante é você falar para pessoas diferentes. Durante muito tempo ficamos muito presos a uma ideia de cinema como uma coisa fechadinha numa caixa, e só aquela forma era considerada como cinema. O que saísse daquilo, já não era mais cinema. Isso impedia muitas pessoas de começar a se manifestar. E também não se levava em consideração o que as pessoas tinham vontade de ver. Falo daquelas pessoas que não eram cinéfilos, amantes e estudiosos do cinema, mas pessoas comuns, que vão ao cinema para se divertir, para refletir ou para conseguir chorar. Aquele filme que a gente diz: “Hoje eu vou voltar nova para casa” (risos). O bacana de qualquer expressão artística é o jeito que aquilo vai tocar as pessoas. Não dá para ter um juiz dizendo: “Olha, não vai aqui, não, porque é caído”. E isso não tem nada a ver com criticar e com o crítico que fala: “Esse filme se propõe a isso, mas não chega lá porque o roteiro tem falhas” Isso é diferente de ter uma patrulha. Não coloco o trabalho dos críticos e a patrulha no mesmo grau. Mas começou-se a ter essa ideia de mercado, de se falar com muitas pessoas. Isso não quer dizer que o filme de arte não possa ter o seu lugar. Esse é o mercado, tem de ter para todos. Fico feliz com o que estou vendo, não estamos só falando da miséria, só do drama político, também estamos falando de banalidades, de viagem de baseado, de histórias e dramas de sofrimento real. Estamos mostrando esse panorama, um país rico como o nosso, meu Deus. Somos uma arca de Noé.


Você foi cogitada para interpretar a madrasta de Chico Xavier, na cinebiografia do médium dirigida por Daniel Filho.




Acabou não rolando. Foi um filme de várias participações, de um, dois dias, ia ficar muito corrido, o Daniel achou que seria inviável, porque tinha uma questão também de continuidade, várias idades, o período de locações. Mas fiquei felicíssima com esse filme, acho que vai ser maravilhoso. É uma outra história incrível. E real, o que é mais louco ainda (risos).


Você ainda tem o projeto de produzir cinco documentários sobre o rio Araguaia.




Quero fazer, sim. Conheci o Javaé, que é um braço do Araguaia, quando fui fazer “India, a Filha do Sol”, com o Fábio (Barreto), acho que em 1981, sou péssima para datas. Para me situar no tempo, fico me lembrando se estava grávida, quantos anos meu filho tinha (risos). Mas quando fui assistir a estreia do filme, estava grávida da Cléo, em 1982, então foi em 1981 mesmo. Aquilo foi um choque gigante para mim, porque eu não tinha nenhuma vivência no campo, em fazenda, com animais. Tinha uma coisa muito de cidade, morando em casa e apartamento, sempre em São Paulo, no Rio. Não tinha nenhuma intimidade com o mato. E foi uma loucura, um sustão pra mim. Passei muito medo. Mas depois fiquei apaixonada. E aí conheci o Orlando, que é de Goiânia. Começamos a viajar para Goiânia e também para os acampamentos do Araguaia. É um rio muito jovem, que tem muita história. De onde nasce e até onde termina, tem história demais. E é um tema ainda inexplorado.


Nelson Motta definiu você como a “primeira grande atriz brasileira especializada em televisão”. Como você recebe isso?




Achei tão bacana ele dizer isso. Realmente eu me identifico com a televisão. Comecei a trabalhar muito cedo. E sou uma pessoa muito intensa, embora tenha um lado muito cool. Acho que as pessoas não me imaginam sendo uma pessoa intensa, mas eu me envolvo demais. E com a televisão não foi diferente, porque eu cresci ali, aquilo faz parte de mim, está em mim. Hoje eu já tenho uma visão mais profissional, mais distanciamento, envelheci, amadureci. Mas tinha uma coisa bastante atávica, muito ligada também ao meu pai, à minha história familiar. E realmente acho que fui a primeira pessoa a dizer que gostava de fazer televisão, que gostava de fazer novela, que havia novelas ótimas, e acho que isso talvez tenha provocado essa junção de imagens, que tenha feito isso ficar tão forte. Também o fato de eu nunca ter feito teatro, que no início as pessoas entenderam mal, acharam que era uma crítica, um mau exemplo que eu estava dando. Tive todo o tipo de críticas em relação a isso, mas era a realidade, nunca fiz teatro, não podia mentir. O único motivo pelo qual eu não fazia e ainda não fiz, foi porque não tive vontade. É simples assim.


Em toda sua carreira, você atuou somente em uma peça de teatro, um espetáculo infantil.




Eu tinha 15 anos, a peça se chamava “Era uma vez uma gata”, um musical infantil. Um pouco antes de começar a fazer Cabocla (1979), uns amigos me chamaram para fazer essa peça. A gente ensaiou muito, e depois quando estreou, como era teatro infantil, só tinha apresentações no fim de semana. Eu gravava fora do Rio para a novela, na fazenda, aí ficou impossível. Ainda mais com o Herval Rossano, que era um diretor íncrivel e maravilhoso, que Deus o tenha em bom lugar, mas super linha dura. Então ficou impossível, só fiz dois ou três fins de semana da peça.
Em 1991, o Orlando, seu marido, chegou a escrever um texto para teatro a partir de uma idéia que você teve, mas a peça não saiu do papel.


O que falta para você fazer teatro?




Uma vez o Antonio Abujamra falou assim: “Por que você não faz teatro?” (imitando o jeito do Abujamra falar). Eu respondi: “Ah, não sei, porque não tenho vontade”. E ele: “Ah, você diz isso porque é jovem” (risos). Mas comigo as coisas acontecem assim: ou tenho ou não tenho vontade. Se eu preciso fazer alguma coisa, mesmo sem ter vontade, farei, darei o melhor de mim, mas não é nessa toada que eu gosto de viver. Vou sempre buscar o que fala o meu coração, o que fala dentro de mim, uma voz, uma intuição, uma afinidade, uma adequação, não sei o que é. Mas é uma coisa que vem de dentro de mim para fora. Eu não funciono quando sou pressionada, porque não consigo relaxar. Sob pressão, não encontro meu ponto de tranquilidade, então não rola. E essa vontade pode ser que não venha nunca. Quantas coisas na vida a gente passa nem nunca ter conhecido. Não vou viver menos por isso (risos).


A Regina Duarte definiu você como uma atriz “econômica”, e disse admirar sua capacidade de trabalhar com o mínimo, apenas com um olhar, uma virada de cabeça. Isso é estudado ou instintivo?




É totalmente instintivo. Comecei a trabalhar muito nova, sempre observei muito, e sou uma pessoa muito tímida. O meu estilo, se é que se pode chamar assim, é uma junção de tudo isso. Mas é algo natural em mim, não há um estudo, uma coisa proposital. O meu trabalho acompanha muito o meu amadurecimento pessoal. Quando assisto a trabalhos meus mais antigos, vejo que estava ligado a uma coisa pessoal, a um momento de vida, uma vivência. É algo mesmo muito instintivo, eu não tenho uma técnica. Algumas vezes, recebi roteiros em que não me via fazendo o personagem, não me sentia amadurecida para entender e fazer aquilo surgir.


Você se autodefine como uma atriz obsessiva, que nunca para de pensar no seu personagem.




Eu sou muito calada, fico muito quieta, mas o tempo inteiro estou pensando coisas sobre o personagem, visualizando, imaginando ele em situações, e muitas vezes surgem coisas interessantes. Torna-se realmente uma obsessão. Não que eu pare de fazer as outras coisas da minha vida, mas é aquilo que ganha espaço no meu cotidiano. As músicas também. Sou muito ligada em música, me ajuda demais. Cheiros também. No fundo, o que eu fico tentando fazer é construir esse ambiente.


Você tem essa ideia de que, como boa leonina, sempre soube que iria durar muito, morrer muito velha, e ter tempo para fazer tudo o que queria. O seu colega e amigo Lauro Corona (1957-1989) chamava você de Vovó Glorinha: seguia devagar e sempre na sua charrete. Você é assim?




Sou totalmente assim! Incrível como o Laurinho sacou isso em mim muito rápido. Eu não tenho essa pressa do tempo, sempre soube que iria morrer muito velha (risos). Quando era muito pequena, não me imaginava adulta. Mas quando cheguei na adolescência, comecei a ter essa sensação de que o tempo não era um problema para mim, que não tinha de estar correndo atrás dele. Talvez isso, com o passar dos anos, tenha sedimentado e me dado até essa imagem. As pessoas falam para mim: “Você é tão calma”. A Regina (Duarte) mesmo me fala muito: “Eu fico boba com a sua calma, como você é pautada” (risos). Mas eu também fico ansiosa. Às vezes, fico numa excitação tão louca que não consigo dormir. Mas tem essa ideia paralela de que não tenho de correr contra o tempo. Tudo vai chegar ao seu lugar certo, no seu tempo. Essa é uma certeza que tenho, e que foi se sedimentando com a idade. Eu não crio essa expectativa de que no ano que vem tenho de fazer não sei o quê, de que enquanto não for viver não sei onde… Comigo não é assim. Confio que as coisas estão vindo, que vão chegar para mim. É um tipo de crença.


Vou repetir uma pergunta que você fez uma vez para o seu colega Tony Ramos: “O que faz você perder a cabeça, o senso de humor?”.




Acho que depende muito mais do dia em que acordo mal do que de algum fator externo. Há dias, por exemplo, em que posso ser totalmente desacatada por um vendedor e terei a maior sabedoria para não me aborrecer, para aquilo não estragar o meu dia. Mas há dias em que um passarinho que faz um cocô e que suja a minha roupa vai destruir a minha tarde. É algo muito mais íntimo, o momento, dormi mal e acordei de mau humor, sei lá, do que algo externo. Claro que situações de injustiça sempre mexem muito comigo, isso me tira do sério. Mas, em geral, é mais um sentimento íntimo do que algo que alguém faça ou diga para mim ou sobre mim. É mais de dentro para fora do que de fora para dentro.


Aos cinco anos de idade, você declamou esse poema de sua autoria: “Eu acho que o mundo parou desde o dia em que eu nasci/ Anda, mundo, caminha, reza a tua ladainha/ Sou criança e quero viver/ Os jovens não podem morrer/ Oh, mundo oprimido/ Oh, mundo sofrido/ Oh, mundo danado/ Parece que rodas parado”. Você escreve?




Teve uma época, quando estava fazendo “India, a Filha do Sol”, que escrevi bastante. Lá não tinha televisão, ouvia muito walkman, e começou a voltar essa vontade de escrever. Mas, depois, parei. Eu desenho mais do que escrevo. A coisa visual para mim é muito mais fácil de vir do que a escrita. Eu tenho uma tendência muito grande a resumir, a colocar o essencial da história, e aí complica, a não ser que você seja um gênio, para as pessoas entenderem você tão resumidamente (risos).


O que você desenha?




Tudo. Adoro desenhar. Nunca fiz aquarela, e agora estou querendo começar. Quando a Cléo esteve aqui com a gente, ela ficou muito envolvida com o negócio de pastel. Vimos algumas exposições incríveis. Ela comprou um monte de livros, de material, de papel, aí foi embora e deixou tudo aqui. E agora estou ali namorando aquilo, já separei um bloco para mim, peguei uma paleta, andei dando uma olhada de como é a técnica. Vou começar a mexer com pastel. Ainda não botei a mão na massa, mas acho que vai ser gostoso.


Você já quis ser arquiteta e também simplesmente dona de casa. Como é a sua vida de dona de casa aqui em Paris, qual a sua rotina?




O lance de ter vindo para cá e logo depois ter ido três vezes seguidas ao Brasil foi um pouco complicado, porque não era eu sozinha com o Orlando, tinha as crianças. Essa coisa de adaptação de escola, os horários, as férias, administrar tudo isso foi um pouco estressante. E como toda hora eu estava indo embora, demorou até o negócio azeitar. Mas agora já estou relax. Têm dias que reservo para fazer pagamento, aí depois do banco vou em algum lugar que não conheço, passear num parque, num museu, sozinha. A coisa deliciosa desta cidade, que ela propicia e da qual sou totalmente fã, é essa liberdade total. Essa coisa de as pessoas comprarem um sanduíche e sentarem numa graminha qualquer e ficar curtindo. Acho isso uma coisa fantástica. Ninguém fica patrulhando ninguém. Todo o mundo se iguala, curte as mesmas coisas. É o piquenique, passear à toa, sentar num café, num banco de praça. Você tem liberdade, porque você não se sente ameaçado. Alguém diz: “Vamos até Créteil (subúrbio de Paris) para ver a peça lá de um holandês”. E vamos, você pega o metrô, desce no ponto final, num lugar que parece a Central do Brasil, e vai caminhar tranquilamente, ninguém vai te incomodar. Lá no centro cultural vai ter um mundo de gente, dois mil e poucos lugares e lotado, uma peça falada em holandês, e isso é maravilhoso. Estou muito fã disso. Viajei muito pouco a minha vida toda. Desde que estou aqui comecei a viajar mais. Essa experiência aqui para mim está sendo muito enriquecedora. Estou curtindo cada dia. Estava falando agora no almoço para o meu cunhado, que está passando uns dias aqui: “Alexandre, todo o dia em que acordo aqui tenho um sentimento de agradecimento”. É tão bom. Mesmo o frio, 8h horas da manhã parece que são 5h da manhã, é verdade, dói, mas tem também o seu lado charmoso. Têm todas as outras coisas maravilhosas.


A água aqui é ruim, acaba com a pele?




Acaba. Haja creme e xampú especial para o cabelo não ficar duro (risos). Mas há todo um lado que não existe em outro lugar. Tem essa coisa do metrô ser tão bom, ter esse transporte público tão eficiente que te dá mais liberdade ainda. É muito bom. Eu estou amando, curtindo cada ida ao supermercado, cada telefonema de reclamação (risos). Estou curtindo tudo.


Você diz que a sua celebridade incomoda realmente em dois momentos, no supermercado e em aeroportos. Aqui imagino que você deve experimentar uma vida um pouco mais anônima.




Com certeza. Tem isso também, mas tem aquela coisa da segurança. No Brasil, eu não deixo de fazer as coisas que eu gosto por ser conhecida. Claro que eu não vou para o Leblon, porque sei que tem um monte de paparazzi. Vou no shopping que tem perto da minha casa, que tem também um monte de paparazzi, mas é perto de casa e é prático. A grosso modo, não deixo de fazer as coisas. Mas lá deixo de ir a muitos lugares, eventos, dependendo da localização e do horário, por medo. A coisa de ser conhecida realmente não atrapalha. O que atrapalha é o medo. Isso que me incomoda.


Mas ir ao supermercado aqui em Paris deve ser bem diferente para você?




Totalmente. Mas é engraçado que aqui no supermercado às vezes têm umas russas que me conhecem das novelas que passam lá. No supermercado que eu vou aqui, as pessoas já sabem que sou atriz (risos). Mas é engraçado, é legal. Eles aqui também têm outra forma de lidar com isso. Ninguém junta o Gérard Depardieu para fazer rodinha de autógrafos e fotos. Isso não é normal aqui. Eles não têm essa nossa cultura de que é preciso ter uma recordação, porque é um artista, porque é conhecido. Eles têm uma relação mais atemporal com essas coisas.


O que você não gostou daqui?




Acho que a rotina do frio. É muito diferente você passear no frio e você ter a rotina do frio. É difícil. Para mim, que não estou acostumada, nasci no calor do Rio, é complicado. Mas agora já lido bem com isso, já não estou sofrendo mais. Nem as crianças. Para elas era chato brincar de casaco, galocha, capuz, você fica meio robô. Agora elas já estão habituadas, já curtem. O Orlando fica muito incomodado quando vai chegando o inverno, só pensa em botar essas crianças no sol.


Elas estão falando bem o francês?




Totalmente. Pegam muito rápido. Mesmo as meninas que estudam na escola bilíngue têm uma aula de francês diária. O Bento está em imersão de francês e tem uma aula de inglês diária. Mas é tão interessante ver como a Antônia, por exemplo – que tem 17 anos e achei que iria ter mais dificuldades -, assiste os filmes e entende. A Ana, de 9 anos, e o Bento, de 5, discutem, trocam informações. O ouvido já recebe bem a língua. É porque eles não têm essa nossa preocupação de falar certo. O pequeno inventa muita palavra (risos). Eles não têm a vergonha, a censura de ter medo de arriscar. É muito engraçado. A gente tem um amigo, um jovem de 19 anos, que vai lá em casa. Ele é um amor, as crianças são loucas por ele. O Bento brinca com ele como se tivessem a mesma idade, e tudo em francês. É muito bonitinho. É um barato observar eles se virando em outro idioma.
Você já viajou bastante por aqui nesse período, foi à Itália, ao Egito, e adorou Londres.




Londres adorei, só achei o metrozinho lá meio difícil, táxi é muito caro, o trânsito é insuportável. Mas gostei muito, poderia morar lá.
Você voltará à tevê em 2011, como uma vilã na próxima novela de Gilberto Braga, na TV Globo. Como será essa volta, e como uma vilã? Você mesma já disse uma vez se surpreender com o número de fã clubes da Maria de Fátima (vilã de Vale Tudo, 1988).




Um amigo meu, que antigamente era meu fã e hoje está organizando um livro a meu respeito, o Eduardo Nassife, de vez em quando me manda uns rankings, tipo: “A pessoa que mais tem comunidades no orkut? Você.” (risos). Só o Eduardo para ficar atrás dessas coisas. Mas em relação à novela vai ser muito legal, me dou muito bem com o Gilberto, adoro o estilo dele, acho que ele tem o maior bom gosto. E faz tempo que não faço uma vilã, acho que vai ser bom. O que eu adorei na Maria de Fátima é que não era uma vilã na concepção maniqueísta de novela. Tinha uma coisa humana. As pessoas não sentiam simplesmente raiva dela, muitas concordavam com o seu pensamento, sabendo que havia ali um lugar que resvalava para o mau caratismo. Mas também sabendo que aquilo que não era totalmente um discurso psicopata. Ela não era uma pessoa louca, capaz de matar todo o mundo. Era uma pessoa moral. Ela queria aquelas coisas, e tinha de dar algum jeito de conseguir. Somos humanos.


Você está sentindo falta de fazer novela?




Acho que vai ser muito legal. A última novela que fiz do Gilberto foi Paraíso Tropical (2007), e a minha personagem era politicamente correta, uma mulher feliz, situada, mãe solteira, criou o filho sozinha, tinha o emprego dela, ganhava seu dinheiro, não precisava de ninguém. Ela era “a” legal. E acho que vai ser bom voltar com o Gilberto fazendo o oposto disso.


Quando você volta para o Brasil para começar a gravar a novela?




Calculo voltar em setembro. Mas o Orlando vai ficar fazendo as coisas dele aqui, e provavelmente as crianças continuarão na escola aqui. Todas as férias que tiverem durante todo o ano, irão para o Brasil. Estamos ainda combinando. A gente veio para ficar um ano aqui, mas o visto (de artista convidado) que o Orlando recebeu é de três anos. Podemos ficar aqui tranquilamente nesse período, e depois renovar. É um lugar para o qual a gente pretende continuar vindo, frequentando, porque isso aqui foi muito bom. A gente fez um upgrade mesmo cultural, é muito legal o jeito que as pessoas vivem aqui, elas não são mimadas. A gente fica com a sensação de que no Brasil somos um pouco mal acostumados. Aqui não tem mimo, cada um faz o que tem de fazer e ponto final. E é normal, a vida que anda, ninguém sente pena de si próprio. O velhinho garçom serve a mesa com o maior orgulho, porque é a profissão dele. Não tem essa autopiedade: “Ai, sou velhinho e estou aqui, servindo mesa”. Ele tem orgulho do trabalho dele, da vida que ele tem. Ai de quem vai ajudar um velhinho no metrô a descer uma escada. Melhor perguntar antes se ele precisa da sua ajuda, senão vai levar um esculacho. As pessoas aqui têm esse orgulho, essa coisa de viver a vida abertamente. No Brasil todo o mundo tem muita pena de si próprio. A gente é muito mimado lá.
Aos sete anos de idade, você foi rejeitada pelo Daniel Filho para atuar na novela Meu Primeiro Amor, porque era “feia”. Você já revelou ter sofrido bastante com isso. Viveu outra experiência similar?




Não vivi, mas essa já foi o suficiente por muito tempo (risos). Durou pelo menos uns sete anos. Melhorou quando o próprio Daniel brigou para que eu fizesse Dancin’ Days (1978/79). Ele que comprou a onda para que eu fizesse a Marisa, filha da Sônia Braga na novela. Isso me deu um suporte, “nem tudo está perdido” (risos). Mas antes foi bem complicado. E quando fui fazer “Primo Basílio”, tive de fazer todo aquele processo inverso (se enfeiar), também um negócio complicado. Cheguei até a pensar em não fazer. Você quer trabalhar para estar melhor, não para se piorar. Mas foi um desafio muito gostoso, muito bom. Fizemos um trabalho de corpo muito legal. Muita gente achava que eu tinha colocado enchimento. Não tinha nada de enchimento, era sό proporção e cor de roupa. É o tipo de trabalho que adoro, de estar mexendo, pesquisando, como um laboratório, descobrindo coisas. A parte do meu trabalho de que mais gosto é essa descoberta, até ficar de pé.
Em comemoração aos seus 40 anos de sua carreira, o Eduardo Nassife e o Fábio Fabrício Fabretti lançarão a biografia “40 Anos de Glória”. Como é para você isso?




Eu falei para o Eduardo: “Olha, não quero uma biografia, porque acho que é uma coisa louca, eu tenho 46 anos, fica pretensioso, maluco”. Ele me disse: “Mas não é a minha ideia, quero fazer porque sei que tem gente que se interessa pelos seus trabalhos, pelas coisas que você fez, e que querem ter material seu, saber como aconteceu, curiosidades”. Quando ele me apresentou a ideia dessa forma, achei bacana. Isso também entra aquela coisa que estava falando do filme, a gente precisa se habituar a ter material nosso, sobre as coisas que dizem respeito à nossa história, sobre os nossos atores, nossos teatros, nossos artistas plásticos, escritores, pessoas que fazem parte da nossa formação, que falam a nossa língua. Precisamos formar esse arquivo, porque não existe. Nos EUA, qualquer ator tem um livro, com fotos, enfim, tem material. É algo normal. Então, gostei da ideia, achei interessante. O livro já está pronto, eles estão me mandando pelo correio e deverá ser lançado no início de 2010.


Você pensa na morte?




Penso muito na morte. Como toda a mãe, penso muito em como os meus filhos vão ficar. Eu trabalho muito para que eles fiquem bem. Aconteceu até uma coisa engraçada na última vez em que fui ao Brasil. Nunca tive esse tipo de pressentimento de que não iria voltar, não tenho medo de avião, mas dessa vez tive, muito forte e por muitos dias. Sempre que viajo, eu tenho uma conversa com eles, deixo algumas coisas acertadas: “Não esquece disso, faz aquilo…”. Coisas que acho importantes para que eles não percam o pé. Mas como eu estava com esse pressentimento muito forte na minha cabeça, parecia que era realmente uma última conversa e começou a ficar muito louco. De repente eu estava falando para eles: “Olha, o importante é que vocês sejam sempre unidos, se ajudem”. Comecei a falar um monte de coisas assim. (risos). Mas isso é algo que me preocupa. Quando a Cléo foi morar sozinha em Los Angeles, eu tive esse medo: “Será que eu ensinei tudo o que ela precisava saber para morar sozinha? Será que eu falei para ela tudo que tinha de ser dito, não esqueci de nada?”. É um pouco de possessividade. Mas em geral não sou uma mãe possesiva. (risos).


Você acredita em Deus?




Acredito. Na verdade, eu sou mais kardecista. Mas não sou fechada em uma religião. Primeiro, porque é um assunto que adoro, as religiões, a forma como Deus se manifesta em cada cultura, acho isso fantástico. Respeito e tenho curiosidade por outras culturas. Fiz uma compilação de ideias que se explicam na minha cabeça, elas têm uma lógica, uma ligação. Têm coisas católicas, outras muito mais kardecistas, coisas do candomblé, do budismo. Coisas que tive a oportunidade de conhecer e que trouxe para o meu culto diário espiritual.


Você medita?




Acho difícil meditar, mas medito, às vezes melhor, outras, pior, mas todos os dias. Meditar é trabalhoso, é o esforço do esforço nenhum. É difícil quando você está habituado a sempre se superar, não fazer nada. A gente cresce com uma ideia de que temos de nos superar, ir além. E quando você tem de fazer nada, simplesmente soltar as amarras, é muito complicado. Mas é um bom treino.


Como imagina a sua vida daqui a dez anos?




Eu sempre me imagino lá na minha fazenda, porque é realmente um lugar especialíssimo, um lugar nosso, que a gente construiu. Tem toda uma história familiar do Orlando, mas é um lugar nosso, muito nosso. Tudo o que tem ali fomos nós que fizemos. Quando eu medito, é para lá que eu vou. Quando a rotina está um pouco pesada, é para lá que eu me reporto. Sempre é lá, à beira do rio, debaixo das mangueiras.




Você se arrepende de alguma coisa, faria algo diferente?




Acho que faria muitas coisas de outra forma, mas o problema é que não gostaria de voltar nem um dia na minha vida, então isso fica anulado (risos). Não há nenhum momento da minha vida para o qual quisesse voltar. Acho o presente tão bom. Mesmo quando ele é um pouco mais difícil do que foi ontem, eu prefiro o hoje.




Fernando Eichenberg, jornalista, vive há doze anos em Paris, de onde colabora para diversos veículos jornalísticos brasileiros, e é autor do livro “Entre Aspas – diálogos contemporâneos”, uma coletânea de entrevistas com 27 personalidades européias.

Um comentário:

Mi disse...

Mar! Obrigada por postar essa entrevista com a lindíssima Glória! Adorei!