domingo, 13 de julho de 2008

Bethânia celebra o mar e a poética portuguesa


Mar de Sophia: um trabalho fonográfico lançado a prestar luminosas contribuições à cultura lusobrasileira. Um CD que se derrama em poesia e irriga de palavras o universo sonoro da artista Maria Bethânia. Nos meses finais de 2006, chegaram ao mercado brasileiro dois CDs produzidos e distribuídos pela gravadora carioca Biscoito Fino, ambos de autoria da cantora baiana Maria Bethânia: Pirata e Mar de Sophia.Apesar de lançados simultaneamente, Pirata corresponde a um projeto específico do selo dirigido por Bethânia, o Quitanda, enquanto Mar de Sophia – objeto deste artigo – representa um trabalho de “carreira”, um CD feito para ser comercializado entre os principais trabalhos desenvolvidos pela cantora cumprindo seu contrato com a Biscoito Fino.
Nunca a cantora santo-amarense esteve tão portuguesa na concepção de um produto artístico seu. Nem mesmo quando ela lançou, em 1983, o elogiado disco Ciclo , que já trazia fortes influências da música lusófona. É com Mar de Sophia que Bethânia fundiu com altiva competência a tradição musical portuguesa a ritmos desenvolvidos por artistas baianos como Roberto Mendes, Jorge Portugal, Vevé Calazans, Capinan, Roque Ferreira, Jota Velloso.
LOUVAÇÃO – O disco é uma louvação às águas. Um projeto que pode ser entendido como um manifesto ecológico, sem perder em nada quanto ao seu valor estético e rigor artístico. Transbordando poesia, ele dignifica e socializa através de récitas e canções a obra poética da portuguesa Sophia de Mello Breyner, morta em 2004. Sophia é celebrada pela artista baiana como uma das vozes mais sublimes que falam/escrevem sobre o mar.
Bethânia diz que esta seara de louvar e estar no mar sempre fora tarefa masculina, e a poeta portuguesa transgride com braveza esta regra dos “aedos” marítimos.A construção de Mar de Sophia foi dirigida à tarefa de celebrar fragmentos de poemas de Breyner, e, ao mesmo tempo, cantar com a poética de letras e músicas temas ligados aos oceanos, às estruturas aquáticas salgadas do planeta Terra.Traz, em suas canções, referências aos orixás (Oxum, Iemanjá, Iansã e Nanã), usa a idéia do mar como metáfora da solidão, como transporte para o encontro e a separação entre os amantes, canta cirandas e une marinheiros baianos a marujos portugueses.
Um dos mais tocantes momentos do disco pode ser conferido com a canção “Kirimurê”, poema escrito e musicado por Jota Velloso sobre a Baía de Todos os Santos, significando um recurso de identificação baiana e brasileira, e protestando contra os desmandos humanos em relação ao Sagrado e à Natureza.A canção Iemanjá Rainha do Mar , de Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro, é tida pela artista como umas das mais bonitas feitas para se louvar, no cancioneiro brasileiro, este orixá, Iemanjá. Há também a belíssima contribuição de Arnaldo Antunes com Debaixo d’Água e o poema Procelária, de Sophia, usado por Maria Bethânia como uma espécie de Oriki (poema sagrado iorubá) português em homenagem ao seu orixá, Oyá.
REFERÊNCIAS – A canção Memórias do mar, de Vevé Calazans e Jorge Portugal, traduz a onipresença de Jorge Amado e Dorival Caymmi, quando o assunto é o cais e o mar da Bahia. A letra misturada à melodia e à voz suingada da cantora revela um dos momentos mais gostosos do CD, talvez por ser esse um instante todo baiano. Parte da letra diz assim: “Velhos marinheiros do mar da Bahia/ O mundo é o mar/ Maré de lembranças/ Lembranças de tantas voltas que o mundo dá”.Ainda sobre as canções do disco, não pode faltar referência a BeiraMar, composta em parceria por Roberto Mendes e Capinan. É desta canção que Bethânia extraiu o verso que dá título ao show que apresenta em turnê por todo Brasil: “Dentro do mar tem rio”.O repertório irrepreensível do CD se completa com composições de Tom Jobim ( As praias desertas), Dorival Caymmi ( Cantiga da Noiva, Noiva, Canto de Nanã, O vento), Sueli Costa ( Quadrinha), Roque Ferreira ( Lágrima), Villa Lobos ( Floresta do Amazonas), Paulo César Pinheiro ( Iemanjá Rainha do Mar e A dona do raio e do vento), Sérgio Ricardo ( Poema Azul), Chico César ( Grão de mar), Vinicius e Toquinho ( Canto de Oxum), além de cirandas e sambas-de-roda de domínio público.
E os fragmentos de poemas de Breyner ditos por Bethânia e intercalando canções? O que sentir depois de ouvir: “Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar”?
Este disco retrata mais um momento de inventividade e consolidação artística em Maria Bethânia.Demarca a baiana como uma das grandes vozes existentes no mundo e, sem sombra de dúvidas, a configura, atualmente, no universo da cultura popular, como o maior artista (feminino e masculino) entre nós, brasileiros.
(Publicado no Cultural do A Tarde em 26.05.2008)

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